Felipe Miranda: O pico do excepcionalismo norte-americano?
Todo o excepcionalismo de Wall Street visto nos últimos anos pode finalmente estar dando lugar a um rali de Europa, China e outros mercados emergentes

“O pior pesadelo europeu”, estampa a capa da Economist, com Donald Trump e Vladimir Putin sentados sozinhos numa grande mesa de negociação. A Europa tem alguma experiência na temática “pesadelo”, tendo vivido ao menos dois deles nos últimos 120 anos. Se esse é o pior, a coisa não parece muito boa.
Olha, se estivéssemos debatendo uma partilha do Brasil, eu, que só penso naquele Baião de Dois e Carne Seca ali da Alameda Tietê quando ouço a palavra Tordesilhas, preferiria ter um conterrâneo à mesa.
Uma eventual divisão territorial da Ucrânia poderia ter o efeito positivo de parar a guerra. Questão humanitária grave e benefícios sociais e econômicos conhecidos, sintetizados nos “dividendos da paz”. Há aqui, no entanto, além de desrespeito a princípios elementares de soberania nacional, uma potencial agressão a toda a governança e às fronteiras definidas pós-45.
O multilaterismo, os tratados internacionais e as organizações supranacionais dão lugar a um bilateralismo impositivo da lei do mais forte.
Ainda que possamos identificar críticas pertinentes à morosidade da Organização Mundial do Comércio (OMC), a desequilíbrios na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a protecionismo disfarçado na Europa, um conservador haveria de perguntar: vamos eliminar a construção das últimas décadas e colocar o que no lugar?
Se um dos objetivos de Trump é trazer a Rússia de volta à mesa de negociações do mundo, teremos de confiar em Putin ou em algum autocrata que vier a sucedê-lo, mesmo sabendo das mazelas da oligarquia local, de seus níveis de corrupção e da relação nem sempre republicana com a igreja ortodoxa?
Leia Também
Ao isolar a Ucrânia e a União Europeia das negociações, Trump elege Volodymyr Zelensky como o ditador da história e ataca a histórica aliança transatlântica. Em alguma medida, toda a herança iluminista e os valores ocidentais clássicos, que inclusive colocavam a Austrália como pertencente ao bloco ocidental, estão em xeque.
Enquanto atropela o multilateralismo, Trump empenha uma campanha doméstica vigorosa contra o deep state americano.
A ambivalência de Trump
Como marca de sua ambivalência, carrega consigo os efeitos positivos de reduzir a burocracia, diminuir custos de transação, melhorar o ambiente de negócios ao dar celeridade aos processos. Ao mesmo tempo, quando ataca a burocracia, a tecnocracia e instituições domésticas consagradas, Trump fragiliza o próprio Estado norte-americano.
Francis Fukuyama, professor de Stanford e famoso pela proposição de “O Fim da História”, tem devotado uma série de artigos, na série “Valuing Deep State”, para basicamente demonstrar como um Estado de alta capacidade, profissional, impressionar é crucial para o sucesso de qualquer sociedade.
Como escreveu Martin Wolf, "qualquer um que tenha trabalhado na área de desenvolvimento econômico, como eu, sabe que, sem um serviço público neutro, competente e profissional, nada na sociedade realmente funciona. Quanto mais complexa e refinada uma sociedade e economia moderna se torna, mais isso é verdadeiro.”
Wolf vai mais longe: "o objetivo seria transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, no qual o detentor do poder é rei”. Para reformar o problemático sistema burocrático dos EUA, o substituiríamos por pessoas ideologicamente alinhadas, de confiança do presidente.
É a essência da democracia liberal, do Império da Lei, da igualdade moral e jurídica, que estaria em jogo. Para críticos mais ferrenhos, estaríamos chegando a um novo estágio do capitalismo, na verdade um tecnofeudalismo — qualquer semelhança com ideias defendidas pelo avô de Elon Musk em sua seita tecnocrática talvez não seja mera coincidência.
Em artigo recente no Brazil Journal, Marcos Troyjo brincou com um improvável encontro entre Milton Friedman e Raul Prebisch para descrever a combinação, por um lado, de um ambiente interno de negócios desregulamentado e desburocratizado, e, por outro, de uma política de substituição de importações.
Diante da insurgência contra o Estado profundo nos EUA, arrisco outra reunião pitoresca, entre Alexis Tocqueville e Sérgio Buarque de Holanda. “A Democracia na América” encontraria “As Raízes do Brasil”, com o respeito à regra, o instrumentalismo americano e seu pragmatismo encontrando “o homem cordial” brasileiro.
Se laços de confiança e proximidade pessoal passam a importar mais do que as instituições consagradas, o mérito dá lugar ao laço pessoal. A regra importa menos do que a afetividade e a pessoalidade.
Assim, a meritocracia, a eficiência, o respeito às instituições vão perdendo espaço. E o que fica?
- LEIA TAMBÉM: Fernando Haddad confirmado na CEO Conference 2025 – o que esperar do evento organizado pelo BTG Pactual?
Sinais dos novos tempos?
Os primeiros sinais efetivos dos novos tempos já fazem eco na formação de expectativa dos agentes econômicos.
O índice de incerteza de comércio (Trade Policy Uncertainty, derivado de pesquisas automatizadas de texto nos arquivos eletrônicos de sete jornais) bateu 323,75 pontos, o maior patamar da série histórica.
No mercado de capitais, depois de uma longa liderança de Wall Street, as bolsas europeias apresentam valorização notadamente mais destacada em 2025. A maioria dos índices de ações europeus sobe mais de 10% neste ano, contra uma alta bem mais moderada da renda variável norte-americana.
A clássica pesquisa com gestores do Bank of America Merrill Lynch (BofA) mais recente apontou aumento expressivo da expectativa de performance superior das ações globais frente àquelas dos EUA.
Comentando a vitória da direita moderada na Alemanha, o banco Société Générale identificou um novo capítulo positivo para os mercados europeus. Michael Hartnett, também do BofA, tem sintetizado o novo momento dos fluxos de capital globais na substituição do acrônimo “AIAI" (all-in on artificial intelligence) para BIG (bonds, international, na perspectiva norte-americana, e gold).
Desde a catálise do evento DeepSeek, a rachadura no ambiente envolvendo as Mag7 nos EUA, para usar a expressão de Nassim Taleb, os fluxos de capital anteriormente drenados por Nvidia e afins agora se destinam a outros lugares. O que foi um grande aspirador de pó da liquidez global nos últimos anos agora atua na outra ponta, provendo recursos.
Tudo isso acontece num momento em que a conjuntura norte-americana emite sinais erráticos e ambíguos. O PMI Composto preliminar da S&P Global para os EUA, que acompanha os setores de manufatura e serviços, caiu para 50,4. Essa foi a leitura mais baixa desde setembro de 2023 e ficou aquém dos 52,7 registrados em janeiro.
Em paralelo, a confiança do consumidor registrou um tombo muito além do esperado, enquanto as expectativas de inflação para longo prazo se deterioraram.
Conforme gosta de lembrar Ray Dalio, as décadas costumam apresentar alternância de bons desempenhos relativos entre regiões e classes de ativos.
Todo o excepcionalismo de Wall Street visto nos últimos anos pode finalmente estar dando lugar a um rali de Europa, China e outros mercados emergentes.
No Brasil, o consenso ainda aponta para apenas um ajuste técnico, uma “subida no vazio”, sem grande alteração de fundamentos, uma mera recuperação cíclica.
Alguns poucos já começaram a mudar de ideia, vendo um pouco mais do que um pequeno rali dentro de um grande bear market. Quando a ideia de um movimento mais estrutural virar predominante, pode ser tarde demais para comprar.
Até tu, Nvidia? “Queridinha” do mercado tomba sob Trump; o que esperar do mercado nesta quarta
Bolsas continuam de olho nas tarifas dos EUA e avaliam dados do PIB da China; por aqui, investidores reagem a relatório da Vale
EUA ou China: o uni-duni-tê de Donald Trump não é nada aleatório
O republicano reconheceu nesta terça-feira (15) que pode chegar ao ponto de pedir que os países escolham entre EUA e China, mas a história não é bem assim
Vale (VALE3): produção de minério cai 4,5% no 1T25; vendas sobem com preço quase 10% menor
A alta nas vendas de minério foram suportadas pela comercialização de estoques avançados formados em trimestres anteriores, para compensar as restrições de embarque no Sistema Norte devido às chuvas
Tarifaço de Trump pode não resultar em mais inflação, diz CIO da Empiricus Gestão; queda de preços e desaceleração global são mais prováveis
No episódio do podcast Touros e Ursos desta semana, João Piccioni, CIO da Empiricus Gestão, fala sobre política do caos de Trump e de como os mercados globais devem reagir à sua guerra tarifária
O mundo vai pagar um preço pela guerra de Trump — a bolsa já dá sinais de quando e como isso pode acontecer
Cálculos feitos pela equipe do Bradesco mostram o tamanho do tombo da economia global caso o presidente norte-americano não recue em definitivo das tarifas
Respira, mas não larga o salva-vidas: Trump continua mexendo com os humores do mercado nesta terça
Além da guerra comercial, investidores também acompanham balanços nos EUA, PIB da China e, por aqui, relatório de produção da Vale (VALE3) no 1T25
Temporada de balanços 1T25: Confira as datas e horários das divulgações e das teleconferências
De volta ao seu ritmo acelerado, a temporada de balanços do 1T25 começa em abril e revela como as empresas brasileiras têm desempenhado na nova era de Donald Trump
Trump vai recuar e mesmo assim cantar vitória?
Existe um cenário onde essa bagunça inicial pode evoluir para algo mais racional. Caso a Casa Branca decida abandonar o tarifaço indiscriminado e concentrar esforços em setores estratégicos surgirão oportunidades reais de investimento.
Felipe Miranda: Do excepcionalismo ao repúdio
Citando Michael Hartnett, o excepcionalismo norte-americano se transformou em repúdio. O antagonismo nos vocábulos tem sido uma constante: a Goldman Sachs já havia rebatizado as Magníficas Sete, chamando-as de Malévolas Sete
Dá com uma mão e tira com a outra: o próximo alvo das tarifas de Donald Trump já foi escolhido
Mesmo tendo anunciado a suspensão das tarifas por 90 dias por conta do caos nos mercados, o republicano diz que as taxas são positivas e não vai parar
Um novo dono para o Instagram e WhatsApp: o que está em jogo no julgamento histórico da empresa de Zuckerberg
A Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos alega que a Meta, que já era dona do Facebook, comprou o Instagram e o WhatsApp para eliminar a concorrência, obtendo um monopólio
Bitcoin (BTC) sustenta recuperação acima de US$ 84 mil — mercado cripto resiste à pressão, mas token Mantra despenca 90% sob suspeita de ‘rug pull’
Trégua nas tarifas de Trump e isenção para eletrônicos aliviam tensões e trazem respiro ao mercado cripto no início da semana
Bolsas perdem US$ 4 trilhões com Trump — e ninguém está a salvo
Presidente norte-americano insiste em dizer que não concedeu exceções na sexta-feira (11), quando “colocou em um balde diferente” as tarifas sobre produtos tecnológicos
Smartphones e chips na berlinda de Trump: o que esperar dos mercados para hoje
Com indefinição sobre tarifas para smartphones, chips e eletrônicos, bolsas esboçam reação positiva nesta segunda-feira; veja outros destaques
Agenda econômica: PIB da China, política monetária na Europa e IGP-10 são destaques em semana de balanços nos EUA
Após dias marcados pelo aumento das tensões entre China e Estados Unidos, indicadores econômicos e os balanços do 1T25 de gigantes como Goldman Sachs, Citigroup e Netflix devem movimentar a agenda desta semana
Guerra comercial: 5 gráficos que mostram como Trump virou os mercados de cabeça para baixo
Veja os gráficos que mostram o que aconteceu com dólar, petróleo, Ibovespa, Treasuries e mais diante da guerra comercial de Trump
COP30: O que não te contaram sobre a maior conferência global do clima e por que ela importa para você, investidor
A Conferência do Clima será um evento crucial para definir os rumos da transição energética e das finanças sustentáveis no mundo. Entenda o que está em jogo e como isso pode impactar seus investimentos.
Ibovespa é um dos poucos índices sobreviventes de uma das semanas mais caóticas da história dos mercados; veja quem mais caiu
Nasdaq é o grande vencedor da semana, enquanto índices da China e Taiwan foram os que mais perderam
Nada de iPhones mais caros? Governo Trump recua e isenta tarifas para smartphones, chips e computadores pessoais
Governo dos EUA exclui smartphones, servidores e chips das tarifas de 145%, em movimento visto como alívio estratégico para a Apple e o setor de tecnologia
Trump virou tudo do avesso (várias vezes): o resumo de uma das semanas mais caóticas da história — como ficaram dólar, Ibovespa e Wall Street
Donald Trump virou os mercados do avesso várias vezes, veja como ficaram as bolsas no mundo todo, as sete magníficas, Ibovespa e dólar