Hapvida do céu ao inferno: os sete erros que fizeram as ações HAPV3 despencarem quase 50% em 15 dias
A frustração do mercado com a fusão da operadora de saúde com a NotreDame Intermédica passa pelo cenário macroeconômico, perda de confiança na gestão e incertezas sobre o futuro
No dia 1º de março, a B3 viu uma cena que se repetiu poucas vezes em sua história: uma ação derretendo mais de 30%, em meio a um balanço apenas marginalmente pior que o esperado. A protagonista do tombo homérico foi a Hapvida (HAPV3) — que, desde então, acumula uma queda de quase 50%.
Apesar de o episódio ser um marco na história da operadora de saúde, o pesadelo não teve início naquele momento. Num passado não muito distante, a ação era a menina dos olhos de grande parte do mercado; agora, o papel já acumula baixa de mais de 70% nos últimos 12 meses.
Para quem acompanhou a excitação e o burburinho que a fusão entre Hapvida e NotreDame Intermédica causou ao ser anunciada em 2021, fica difícil imaginar as razões para tamanho pessimismo do mercado neste momento.
Na teoria, o casamento do século seria imbatível: complementaridades geográficas, operações eficientes e um objetivo comum. Na prática, a convivência dentro do mesmo teto tem se mostrado complicada e uma verdadeira dor de cabeça — e é aí que mora uma das grandes desilusões dos investidores.
A conclusão da fusão dos negócios só veio em fevereiro de 2022, depois de meses de discussão e aprovação dos órgãos regulatórios. No dia 14 do mesmo mês, as ações GNDI3 deixaram de ser negociadas na bolsa.
Esperava-se o nascimento de uma gigante na bolsa, mas, de lá pra cá, o valor de mercado da Hapvida foi pulverizado. Logo após a conclusão da fusão, a companhia era avaliada em cerca de R$ 87 bilhões; no fechamento do pregão da última quarta (15), a cifra era de meros R$ 17,7 bi.
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O valor de mercado atual equivale a menos da metade do market cap da Hapvida ou da NotreDame Intermédica quando consideradas isoladamente, antes de a operação ser completada.
À primeira vista, pode até parecer que os problemas da companhia se resumem ao balanço do quarto trimestre, mas a verdade é que, ao longo do último ano, uma série de erros foram cometidos — e os investidores parecem ter perdido a confiança e a paciência com a gestão.
A decepção não se restringiu apenas ao desempenho da empresa no quarto trimestre. Ainda houve um agravante: poucos dias após a divulgação do balanço, a Hapvida informou que estuda a venda de ativos não estratégicos e até mesmo a possibilidade de se realizar um aumento de capital por meio de uma nova emissão de ações (follow on).
Olhado pelo lado positivo, a clareza da Hapvida sobre os planos que estão na mesa mostra que alternativas estão sendo consideradas, mas, no geral, prevaleceu a leitura negativa do cenário. Ou seja: os problemas podem ser bem maiores do que os imaginados.
Jogo dos sete erros
A fórmula para o sucesso parecia simples: unir as duas maiores operadoras de saúde verticalizadas, com ampla estrutura de hospitais, clínicas e laboratórios para atendimento próprio, criando uma gigante capaz de nadar de braçada por um setor ainda muito fragmentado e cheio de potencial futuro.
Os números da operação não eram nada modestos: na largada, a nova empresa já contaria com mais de 13 milhões de usuários dos planos de saúde e odontológicos, uma receita líquida combinada de quase R$ 5 bilhões e uma expectativa de sinergias de até R$ 1,38 bilhão a serem capturadas em três anos.
Não faltaram bancos de investimento e casas de análise para exaltar a operação e falar sobre uma revolução no setor de saúde. Mas, um ano após a consumação da combinação dos negócios, os números não são tão animadores assim para o mercado.
A companhia viu a sua receita líquida subir para R$ 6,5 bilhões no quarto trimestre de 2022, com mais de 16 milhões de beneficiários, mas a sinistralidade do caixa subiu a 67,2% — o que indica uma média per capita de utilização acima da casa dos R$ 170.
A alavancagem também deu um salto nos três últimos meses do ano passado, com a relação entre a dívida líquida e o Ebitda ajustado alcançando a casa de 2,45 vezes; o endividamento líquido atingiu a marca de R$ 7 bilhões.
É bem verdade que os fortes números reportados pela Hapvida em 2021 estavam sendo comparados com uma base deprimida — a utilização das operadoras de saúde caiu drasticamente durante a pandemia —, mas é inegável a decepção dos investidores com os frutos colhidos desse casamento até agora.
Para um gestor de uma asset em São Paulo, o setor como um todo está sofrendo com os "efeitos secundários" da pandemia — como a maior demanda por consultas e exames, o aumento do uso das redes credenciadas e a redução dos preços das apólices em 2022, considerando o baixo uso no ano anterior. E, no caso da Hapvida, isso precisa ser vivido em paralelo com uma integração que se mostrou mais complicada do que o esperado.
Ainda que seja inegável o cenário mais complicado para todas as empresas de saúde, analistas e gestores ouvidos pelo Seu Dinheiro são categóricos ao afirmar que foram cometidos erros cruciais que levaram a Hapvida do céu ao inferno na bolsa.
Os sete erros da Hapvida (HAPV3) — e também do mercado
1) Grandes expectativas, grandes frustrações
Para muitos analistas ouvidos pela reportagem, o primeiro erro foi a ausência de maiores questionamentos sobre as potenciais sinergias na combinação dos negócios entre Hapvida e Intermédica.
Os planos apresentados pela gestão da nova empresa foram vistos como executáveis e concretos, mas o caminho se mostrou cheio de desafios para que a cifra de R$ 1,3 bilhão em ganhos sinérgicos seja alcançada.
Segundo os cálculos da Hapvida, a integração deve trazer cerca de R$ 800 milhões a mais em Ebitda, na expectativa de um aumento na venda dos planos.
Os demais R$ 580 milhões virão da economia com a renegociação de contratos e integração das áreas das empresas — e, na leitura do mercado, é aqui que está uma das maiores pedras no sapato.
Isso porque integrar duas companhias de larga escala — e com atuação regional distinta — não permite tantas centralizações e cortes administrativos quanto o inicialmente esperado.
“Acabou sendo um pouco mais difícil do que era no papel. Na planilha do Excel estava tudo ok, mas na vida real, não. Duas empresas daquele tamanho... acho que foi mais confuso e difícil do que eles estavam esperando", aponta Henrique Abras, da Inter Invest.
Apesar de hoje os números parecerem ousados e difíceis, é bom lembrar que, na época do anúncio, muitos bancos de investimentos se decepcionaram com a cifra apresentada — o Morgan Stanley, por exemplo, trabalhava com uma estimativa “conservadora” de R$ 1,67 bilhão em ganhos com sinergias.
Confira o cronograma inicial para a captura das sinergias apresentado pela Hapvida:
2) O setor de saúde saiu abalado da pandemia
A crise deixada pelo coronavírus vai muito além da alta dos juros e outras implicações macroeconômicas. Os especialistas apontam para tendências irreversíveis — incluindo dentro do setor de saúde.
Em um primeiro momento, operadoras acabaram se beneficiando do baixo nível de utilização de seus serviços no auge da pandemia, mas, uma vez passado o pior, a população parece ter voltado aos hospitais e laboratórios, fazendo a sinistralidade das companhias dispararem.
O que se imagina ser um evento momentâneo, no entanto, já dura mais trimestres do que o desejado pelos analistas e o mercado em geral — e existem duas razões para isso.
Como os reajustes regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) utilizando dados de uma base reprimida para a elaboração dos índices de revisão de preços, as companhias não conseguem repassar para os consumidores o aumento de seus custos.
O represamento do repasse ainda coincide com um outro movimento: uma aparente mudança no padrão de utilização de planos de saúde no pós-pandemia, com a população muito mais preocupada com a prevenção de doenças — o que pode significar que o equilíbrio da sinistralidade caixa das operadoras pode passar a ser mais alto do que a média histórica.
3) A herança maldita de Hapvida e Intermédica
Antes de anunciarem ao mundo a intenção de fundir suas empresas, a Hapvida e a Intermédica vinham em ritmo acelerado de aquisições.
Embora em regiões distintas do território brasileiro — a Hapvida no Norte e Nordeste, enquanto a NotreDame Intermédica focava no Sul e Sudeste —, os alvos escolhidos pelas duas gigantes eram muito parecidos: empresas verticalizadas ineficientes ou com uma carteira de vidas e infraestrutura atrativa para avançar em novos mercados.
Era difícil que uma semana se passasse sem que um novo anúncio de compra fosse anunciado por um dos dois grupos. E, apesar dessas operações terem sido bem recebidas à época, alguns elementos podem estar pressionando o operacional da Hapvida ainda em 2023.
Alguns analistas apontam que muitas das empresas adquiridas, principalmente pela Hapvida, tinham um perfil muito ineficiente — com a sinistralidade muitas vezes ultrapassando a casa dos 100%.
Se na época da aquisição esses elementos surgiram como uma oportunidade de compra por um preço mais módico, a integração ao ecossistema Hapvida Intermédica em um momento mais complicado do cenário macroeconômico e uma cobrança maior por resultados traz um peso de “herança maldita” para parte desses ativos.
4) Endividamento da Hapvida preocupa em tempos de juros altos
Como uma empresa em crescimento e com grande necessidade de financiamento, o aumento da taxa Selic teve forte impacto no balanço da Hapvida.
Com os juros saindo de 2% ao ano em 2021 para 13,75% em 2023, a dívida da Hapvida também acelerou. A companhia saiu de um múltiplo dívida líquida/Ebitda de -0,80x no fim de 2021 para 2,45x em dezembro de 2022 — o que indica um endividamento líquido e dívidas oriundas de empresas adquiridas de cerca de R$ 7 bilhões.
5) Um adeus inesperado (e traumático)
Um dos principais destaques do plano de fusão era o compromisso de que as duas companhias seriam tocadas em pé de igualdade, sem que a cultura corporativa de cada uma delas fosse eliminada ou substituída em nome da nova empresa que surgiu.
Assim, surgiu um modelo de gestão em que a companhia seria dirigida por dois Co-CEOs — Irlau Machado Filho, da Intermédica, e Jorge Pinheiro, da Hapvida.
Mas apenas 10 meses após a consumação da fusão, Machado entregou sua carta de renúncia — citando propósitos e objetivos pessoais —, deixando a estrutura da companhia concentrada nas mãos do CEO da Hapvida.
A notícia não foi bem recebida pelo mercado na época e continua sendo citada por gestores e analistas como uma "quebra de confiança" com relação à empresa, uma vez que se esperava que Irlau fosse um dos condutores do projeto de integração.
O ex-CEO é um dos nomes mais respeitados do setor de saúde brasileiro e comandou a Intermédica por oito anos antes de sua renúncia.
Aos olhos do mercado, a saída de Machado dificultou o processo de integração entre as companhias — e vai contra a promessa de isonomia entre as duas partes apresentada no plano inicial da fusão.
6) Faltou clareza
A saída de Irlau Machado foi um duro golpe para o mercado no momento da renúncia e posteriormente. Isso porque, de acordo com gestores consultados, faltou clareza na forma como os executivos da Hapvida vêm guiando o mercado sobre o futuro da companhia.
Ou seja: até agora, pouco se sabe sobre uma adaptação do plano inicial de sinergias ou até mesmo sobre como será a configuração administrativa das duas gigantes.
Um analista aponta que essa é uma crítica que precede a fusão, uma herança do “DNA Hapvida” para o novo negócio, uma vez que a companhia ainda hoje preserva características de uma empresa familiar.
7) E o futuro da Hapvida?
Embora os especialistas consigam apontar onde a maior parte dos erros estão, é difícil dizer o que será do futuro da companhia.
Por ora, o que se sabe é que o cenário macroeconômico segue complicado para as empresas do setor de saúde — com o desemprego afetando o fechamento de novos contratos coletivos, dificuldade no repasse de custos acima da inflação devido ao estrangulamento da renda das famílias e os juros altos que afetam negativamente o endividamento.
Como a Hapvida fará para driblar esses desafios? Essa é a resposta que os investidores tanto procuram antes de voltar a apostar na tese da companhia.
Ao admitir estudar uma nova emissão de ações em um momento de forte queda dos papéis, a companhia passou uma imagem de “desespero por uma saída”, segundo um dos analistas consultados, indicando uma urgência de captação de recursos para honrar compromissos.
“Ficou claro que o cenário de curto/médio prazo é pior do que o mercado em geral esperava. Para nós, o 4T22 serviu para entendermos que as expectativas para crescimento e rentabilidade que tínhamos para 2023 devem ficar para 2024 em diante”, explica Breno de Paula, do Inter Invest.
Ainda vale a pena comprar Hapvida?
Com base no que aconteceu até o momento e na forte queda dos papéis, boa parte dos bancos de investimentos e casas de análise colocaram a tese de investimento de Hapvida sob revisão, mas alguns já divulgaram os seus novos números.
O Credit Suisse rebaixou os papéis para o patamar neutro e cortou o preço-alvo de R$ 6,50 para R$ 4,40. A Genial manteve sua recomendação neutra, mas também reduziu sua expectativa para as cotações — de R$ 8,50 para R$ 5,00. O Itaú BBA manteve a sua recomendação de compra, mas cortou o preço-alvo para R$ 4,40.
O consenso parece ser o de que as ações, de fato, estão em patamares muito baixos, mas o futuro da empresa se tornou um grande mar de incerteza — e, nesses casos, é melhor esperar a maré baixar antes de tomar uma decisão.
Um gestor que possuía uma "posição pequena" em HAPV3 logo após a publicação do balanço do quarto trimestre de 2022 afirmou que, por mais que as ações da Hapvida tenham desabado mais de 30% na sessão posterior aos resultados, a casa optou por não mexer nessa fatia imediatamente; a ideia, segundo ele, é entender melhor a situação da empresa "antes de tomarmos qualquer decisão".
Apesar do mau humor pós-balanço e das revisões cada vez mais pessimistas, é importante destacar que, no longo prazo, alguns analistas ainda acreditam no potencial da fusão — o desfecho só parece ter sido adiado por alguns longos anos de inverno.
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