Este episódio de Black Mirror não está na Netflix, mas vai alugar um triplex na sua cabeça: descubra como o ChatGPT pode até mesmo ‘roubar’ o lugar da sua namorada
Um homem chega em casa exausto depois de uma semana intensa de trabalho. É sexta -feira e tudo está em silêncio, o lugar está escuro. Ele mora sozinho. O vazio do ambiente começa a contaminá-lo a ponto de despertar uma certa tristeza pela solidão que enfrentaria nas próximas horas.
Ele se senta no sofá e, quando está prestes a se render à Netflix, a lembrança chega e ele diz: “é verdade! Agora tenho uma namorada”. Feliz, ele busca o celular para poder falar com ela.
“Amor, como foi seu dia?”, ela pergunta. Ele começa um monólogo: fala sobre as dificuldades no trabalho, sobre a relação xoxa com os colegas e sobre o chefe que fica pegando no seu pé. Ela ouve pacientemente e só diz frases de apoio, bastante condescendentes.
“Que bom que posso falar com você”, diz ele. E ela responde: “estou sempre aqui para você”. Até que a tela desliga: o tempo acabou. Ele precisa pagar mais para continuar falando com a namorada.
Ela, na verdade, é uma inteligência artificial projetada para ser uma namorada virtual que “cura a solidão” — de acordo com seus próprios criadores — seu nome é Caryn. Sobrenome? AI, uma abreviação em inglês para o termo Inteligência artificial.
Nem Black Mirror iria prever: a “cura da solidão” custa US$ 1 por minuto
A situação que descrevi acima pode até parecer o início de mais um episódio de Black Mirror — guardadas as disparidades na qualidade do roteiro, rs. Mas trata-se apenas de mais um capítulo da vida real, que cada vez mais vem deixando a ficção da série da Netflix para trás.
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Estou falando do caso da influenciadora norte-americana Caryn Marjorie, de 23 anos, que conta com quase dois milhões de seguidores no Snapchat. Recentemente ela lançou uma ‘cópia’ de si mesma em versão de chatbot de inteligência artificial para que seus fãs tenham uma experiência imersiva que se assemelha a uma conversa real com ela.
A intenção é fornecer aos usuários uma experiência de namorada com a qual os fãs podem se relacionar emocionalmente.
Usando a tecnologia da OpenAI, a mesma do ChatGPT, a voz e até mesmo os trejeitos da influenciadora são replicados para criar uma sensação de conversar com a própria Marjorie.
O serviço chama-se CarynAI, custa cerca de R$ 4,70 por minuto e a influenciadora espera ganhar mais de R$ 23 milhões por mês com a tecnologia, que já rendeu R$ 470 mil na sua primeira semana de lançamento, de acordo com Marjorie. Ainda segundo a influenciadora, há uma grande fila de espera para acessar o chat.
“A razão pela qual criei CarynAI foi porque queria curar a solidão da minha base de fãs”, diz ela em uma entrevista para o jornal The Washington Post.
A influencer relata que recebe milhares de mensagens diárias dos seguidores — compostos por uma maioria esmagadora de homens — e que é humanamente impossível responder a todas. Então foi daí que surgiu a ideia do produto.
A empresa por trás da empreitada é a Forever Voices. O CEO e fundador da companhia, John Meyer, espera que esse lançamento seja só o começo e vem fazendo reuniões com investidores para deslanchar o projeto.
A intenção a longo prazo é criar avatares para vários influencers digitais e eles nem sequer precisam existir de fato. Isso porque a empresa também quer fazer versões interativas de influenciadores virtuais, como é o caso da Lil Miquela, uma personalidade que só existe nas redes sociais e já acumula milhões de seguidores.
Falo mais sobre a nova onda de influenciadores digitais, ou influencers 3.0, neste texto.
O lançamento da CarynIA acontece em um momento no qual o mundo inteiro está olhando para o desenvolvimento acelerado da Inteligência Artificial, enquanto tentamos desvendar quais são as implicações disso para a humanidade.
E aqui levanto um ponto que vem colocando uma bela pulga atrás da minha orelha nos últimos meses: e se a Inteligência Artificial começar a ser usada para monetizar a solidão?
A epidemia da solidão
Este pode ser um tópico sensível para explorar bem na manhã de um domingo, então pretendo ser breve: as pessoas têm estado cada vez mais sozinhas. A crise da solidão foi intensificada nos últimos anos pela pandemia, mas o período de emergência sanitária não é o único culpado pelo ‘surto’.
O estudo ‘A epidemia de solidão e isolamento’ mostra que as atividades sociais de todos os tipos diminuíram consideravelmente e compara a solidão com o consumo de 12 cigarros por dia. Os autores também apontam que esse não é um problema novo, mas que vem se intensificando por décadas.
Por exemplo, medidas objetivas de exposição social obtidas entre 2003 e 2020 mostram que o isolamento social — medido pela média de tempo que aos norte-americanos passam sozinhos — aumentou de 2003 (142.5 horas por mês) até 2019 (154,5 horas/mês) e continuou a crescer em 2020 (166,5 horas por mês).
Isso representa um aumento de 24 horas por mês gastas sozinho. Ao mesmo tempo, a participação social em vários tipos de relacionamentos tem diminuído constantemente.
O tempo que os jovens de 15 a 24 anos passam com amigos caiu drasticamente também nas últimas décadas, de uma média de 2,5 horas por dia para cerca de 40 minutos.
No Reino Unido esse problema entrou no radar do governo em 2018. Na época, a então primeira-ministra Thereza May decidiu criar uma espécie de “ministério” para tentar resolver a questão. Ficou a cargo da então ministra do esporte e sociedade civil, Tracey Crouch, trazer soluções.
Embora a iniciativa tenha durado só um ano, ela identificou que mais de 9 milhões de cidadãos do país se sentiam sozinhos quase constantemente e cerca de 200 mil idosos relataram não ter conversado com um amigo ou familiar em mais de um mês.
O ChatGPT vai virar nosso melhor amigo?
O ponto é: as pessoas estão cada vez mais isoladas e, se não tomarmos cuidado, isso pode virar uma espécie de commodity.
Até porque o caso da CarynAI pode ser só o começo, mas não é a primeira vez que vemos casos de pessoas tentando criar uma relação mais profunda com um avatar de IA.
Nas últimas semanas, um outro caso virou chacota nas redes sociais: a americana Rosanna Ramos resolveu os seus problemas de relacionamento ao se casar com um homem criado em um aplicativo de inteligência artificial.
Para construir a aparência de seu “marido”, ela se baseou no personagem do anime Attack On Titan e usou o aplicativo Replika, que foi lançado em 2017 e é comercializado para pessoas “solitárias”.
De acordo com informações do Business Insider, a empresa por trás do app tem mais de 10 milhões de usuários cadastrados e recebe milhões de mensagens semanais.
O próprio Snapchat também lançou recentemente o seu próprio chatbot de IA. O chatbot, chamado “My AI”, estará disponível para assinantes premium do Snapchat+, conforme o comunicado da empresa.
Em entrevista ao The Verge , o CEO da Snap, Evan Spiegel, disse: "A grande ideia é que, além de conversar com nossos amigos e familiares todos os dias, vamos conversar com a IA todos os dias".
Qual é o problema nisso?
Em um texto para o Business Insider, o repórter Daniel Cox explora a densidade das relações humanas e como suas nuances não podem ser substituídas por um ‘robô responsivo’.
"Os relacionamentos que importam são formativos. Eles nos mudam. Eles nos fornecem oportunidades para praticar o perdão, a paciência e a bondade. Os relacionamentos mais valiosos são aqueles que nos motivam a melhorar. Relacionamentos que não exigem empatia e compreensão nos roubam muitas coisas que os tornam tão importantes", escreve.
Ou seja, um chat subserviente não é capaz de suprir essas nossas demandas emocionais. Nós não nos tornamos pessoas melhores por pura força de vontade, as relações humanas estão aí para isso.
Diante de tudo isso, sobre a reflexão: será que a inteligência artificial está prestes a mudar a nossa forma de nos relacionar uns com os outros?
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Como ainda não há formas de dar uma resposta concreta para essa questão, cabe a nós acompanhar o desenvolvimento e os rumos que a inteligência artificial tomará daqui para frente.
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