No coração da Faria Lima, um dia perfeitamente (a)normal na Americanas Express
Se o mercado financeiro esteve em ebulição com a recuperação judicial da Americanas (AMER3), o clima era de calmaria numa das lojas da rede
Quase quatro da tarde de quinta-feira, 19 de janeiro de 2023. A ação da Americanas (AMER3) derrete mais de 30% e é negociada abaixo de R$ 1,20, numa nova mínima histórica. Não à toa: horas antes, a gigante do varejo deu entrada em um pedido de recuperação judicial, declarando dívidas de R$ 43 bilhões — e colocando o mercado em polvorosa.
Em uma semana, a Americanas foi de grande player do e-commerce nacional a empresa a um passo da falência, numa reviravolta corporativa quase sem paralelos no Brasil: erros contábeis, demissões espalhafatosas de executivos veteranos, troca pública de farpas entre bancos credores e a companhia.
No meio disso tudo, Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil — e acionista de referência da Americanas, em conjunto com Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, o 'trio de ferro' dos megainvestidores do país. Tidos como exemplos a serem seguidos, eles optaram por um caminho discreto em meio ao furacão, digamos assim.
Mas, enquanto as ações da Americanas viram pó e o mercado vive mais um dia turbulento, tudo segue na mais perfeita tranquilidade para Gusttavo Lima — ele canta, alheio à bolsa de valores, aos memes do Twitter e ao imbróglio jurídico que deve se arrastar por anos.
Hoje eu acordei, me veio a falta de você / Saudade de você, saudade de você
O sucesso do sertanejo embala as compras de uma dúzia de clientes que perambulam pelos corredores da Americanas Express, modelo de loja física da varejista localizada na Rua Joaquim Floriano — uma das vias centrais da Faria Lima, o coração financeiro de São Paulo. A reportagem do Seu Dinheiro esteve por lá nesta quinta-feira, e se deparou com um dia perfeitamente normal.
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Logo na entrada, uma promoção de pacotes de bolachas — leve três e pague R$ 10,99 — divide espaço com TVs de mais de R$ 4 mil. Em sequência, gôndolas com produtos variados: doces, materiais escolares, itens de higiene pessoal, salgadinhos, tintura para cabelo. Ao fundo, uma sessão de brinquedos e outra de artigos para a cozinha.
"Não estava sabendo, fiquei sabendo agora. É coisa de tributo?" diz um cliente, ao ser questionado sobre a recuperação judicial da Americanas — ele não se mostrou muito impactado pela notícia. "Tudo bem, o que importa é o preço, né?"
Na Americanas Express, vida que segue
A calmaria vista nos corredores da Americanas Express do Itaim contrasta com o clima pesado nos escritórios de investimento e outros elos do mercado financeiro: a recuperação judicial da varejista já era amplamente esperada, mas, ainda assim, sua concretização chocou a muitos.
Na Faria Lima, os bastidores do calvário da Americanas dominaram as conversas nos últimos dias. O que, de fato, aconteceu com a empresa? Como os famigerados R$ 20 bilhões sumiram do balanço? Quem vence a queda de braço judicial, os bancos com dívidas milionárias ou a companhia, à beira da bancarrota?
E Sérgio Rial? E Lemann, Telles e Sicupira? E os fundos que investiam em ativos da Americanas? E as outras varejistas da bolsa? E as auditorias, que deixaram passar um rombo desse tamanho? E agora?
Mas, enquanto o coração financeiro do país se debruça sobre um caso com mais perguntas que respostas, a rotina da loja da Americanas na Joaquim Floriano segue praticamente inalterada: há seis funcionários trabalhando — repositores de itens nas gôndolas, caixas, controladores de estoque.
O que será deles, e das outras dezenas de milhares de colaboradores da Americanas? Ao menos por ora, tudo segue normal e ninguém mostra-se particularmente preocupado com o rombo contábil.
Um homem faz uma chamada de vídeo com uma criança e mostra chocolates KitKat — risos e barulhos de alegria saem do celular. É uma senhora promoção: cinco unidades por R$ 10,99; numa lanchonete a poucos metros dali, uma única barra custa R$ 5.
Mas, como dito acima, tudo segue praticamente normal — é impossível negar que há um elefante no corredor de tinturas para cabelo. "Orientação a gente não teve, a única coisa que foi passada foram mudanças no quadro da loja. As promoções, algumas foram cortadas, outras aumentadas, esse tipo de coisa", diz uma das funcionárias.
A conversa é brevemente interrompida por um aviso no alto-falante — era preciso reforço nos caixas. E, passado o alerta, Gusttavo Lima recomeça:
É ela que eu amo, não vou negar/ Juro, não queria te machucar
Dê a volta por cima
A maior parte dos trabalhadores da loja mostrou certa hesitação ao ser abordada pela reportagem do Seu Dinheiro e não quis se alongar muito, mesmo em condição de anonimato; uma atendente disse apenas que era nova na empresa e não sabia responder.
Mas a funcionária que falou sobre a rotação nas promoções não se furtou em falar mais: ela foi além e ponderou que era preciso manter a calma e que a situação atual da Americanas era apenas uma fase como qualquer outra, um ciclo comum nas varejistas.
"É uma loja muito grande, tem muitas filiais. Acredito que falir… pode ser que sim, pode ser que não, mas eu acredito que não. Uma loja tão grande como essa não pode falir, são muitas pessoas trabalhando, muita gente desempregada. É só uma fase", diz ela.
Ela passava por uma gôndola particularmente bagunçada: a de livros, que aparentemente não tinha nenhuma lógica de organização. Best sellers, auto ajuda, contos infantis, literatura nacional e internacional — há um pouco de tudo. Inclusive uma obra com um título, no mínimo, irônico:
Medo? Não...
No fundo da loja, uma outra funcionária organiza uma prateleira com panelas de inox — embalagens grandes e que exigem um grande esforço para serem dispostas da maneira correta. Passados apenas alguns minutos de todo o trabalho, uma mulher passa por ali e pega uma das caixas.
Abordada, ela tenta se esquivar — está com pressa. Diz estar ciente da crise financeira das Americanas, mas não se mostra abalada. "Os produtos estão bons, iguais aos que eu comprava antes", diz ela, afastando-se da reportagem. "Vamos ver se o Brasil melhora", conclui nervosamente.
Mas se a confiança dos clientes parece sólida na Americanas Express, a mesma situação não ocorre em relação à operação online — Submarino, Shoptime e a própria Americanas.com são os braços de e-commerce da varejista. O primeiro comprador citado na matéria, que sequer sabia do caos financeiro da loja, teve um estalo ao ser perguntado se, a partir de agora, continuaria fazendo aquisições nesses sites.
"É... sim. Meio com o pé atrás de não entregar, né?"
Americanas: enquanto isso, na Faria Lima
Por mais que as promoções de chocolate e os produtos de limpeza continuem ocorrendo como sempre na Americanas Express, a Faria Lima mostra-se preocupada com o futuro da rede de varejo. O pedido de recuperação judicial já foi aceito pela Justiça do Rio, o que blinda a companhia das execuções de dívida. Ainda assim, as dúvidas persistem.
Como obter capital para fortalecer o caixa e manter as operações de pé nesse meio tempo? Como se dará a delicada relação com os bancos daqui em diante — sob quais condições eles poderão oferecer crédito à companhia para a compra de estoques?
De concreto, apenas o fato que as ações da AMER3 terminaram a quinta-feira em baixa de 42,53%, a R$ 1,00 — portanto, os mesmos R$ 10,99 que compram cinco chocolates KitKat também adquirem quase onze papéis da companhia.
Vale lembrar que, em 11 de janeiro, as ações AMER3 valiam R$ 12,00; em meados de 2020, auge do otimismo do mercado com o e-commerce, chegaram a ultrapassar a marca dos R$ 120. Dados que estão na boca de todos os agentes financeiros da Faria Lima, mas que ainda não ecoam no chão da loja física localizada a metros de alguns dos mais importantes escritórios do país.
E que tampouco encontram paralelo na música de Gusttavo Lima, que segue tocando no alto falante:
Me doei, me entreguei / Fui fiel / Chorei, chorei
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