Cenário (aparentemente) binário: o governo Lula e o fim do Brasil
Na retórica, a responsabilidade fiscal foi condenada e o mercado financeiro virou o malvado favorito da vez, como se não fosse apenas um mecanismo de alocação de recursos que obedece às sinalizações do sistema de preços
"Eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! (…) Este mundo é muito misturado …”
“Preto é preto? Branco é branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade”.
Quando falta conteúdo, muita gente cita o Buffett. Tenho uma regra interna, que não conto pra ninguém: se, em uma conversa, o interlocutor cita uma frase do velhinho, sempre tentando impressionar com um argumento de autoridade pseudossofisticado, desligo meu aparelho do centro auditivo Telex. Apelou, perdeu.
Entre nós dois aqui, posso confessar que sempre preferi as ideias de Soros àquelas de Buffett. A dialética e a endogeneidade da teoria da reflexividade me parecem mais capazes de descrever o funcionamento das coisas do que o maniqueísmo da dicotomia entre preço e valor intrínseco.
É como se esse último, que eu nunca encontrei na rua, vivesse isolado do mundo, com suas próprias (intrínsecas) características, sem influência externa, passível de ser tocado e medido com precisão.
Kant resolveu essa questão há tempos. A realidade só existe a partir do nosso próprio filtro. Então, o tal valor intrínseco teria efeitos do olhar do observador, passando, assim, a ser extrínseco.
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Dicotomia infantil
Se a linguagem nos impõe limites intransponíveis, melhor apelar para a arte, que costuma apontar boas respostas, ainda que ela não saiba. Volto ao clássico (e citado aqui repetidas vezes) de Guimarães Rosa, com sua capacidade atemporal de descrever problemas ontológicos.
Perdão, desculpe a digressão intrometida, mas permita-me perguntar: qual foi o momento exato em que você passou a amar sua esposa (ou seu marido)? Quando você percebeu ser apto a realizar a tarefa hoje desempenhada com grande facilidade?
O mocinho contra bandido, o médico e o monstro, o genocida contra o comunista, os apartamentos comprados com dinheiro vivo contra as mazelas do petrolão, a rachadinha e o mensalão, o neoliberalismo contra o desenvolvimentismo, o Lula 1 contra o Dilma 3 (Deus tenha piedade de nós!), a política social contra a fiscal.
Vivemos uma dicotomia infantil na análise brasileira, numa guerra retórica de bem contra o mal. Nas minhas ideias platônicas, concordo que ninguém é voluntariamente mau. Ah, e como gosta de repetir o Pondé, se você se acha do bem, meu amigo, tenho até medo do tanto de maldade que carrega dentro de si sem perceber.
Convivem dentro da gente, dos políticos (que, sim, são pessoas também) e dos países (formados por pessoas, que criam suas instituições formais e informais) ambivalências e multiplicidades variadas, resultando em equilíbrios, muitas vezes, fora dos dois extremos.
A pergunta de 1 bilhão de dólares
Neste momento, a pergunta de um bilhão de dólares parece ser: Lula terá responsabilidade fiscal?
Voltamos ao problema da linguagem e do observador. Não vejo resposta precisa possível neste momento. Talvez, no entanto, as últimas sinalizações e a observação da História brasileira possam permitir arriscar um palpite.
As indicações das últimas duas semanas foram as piores possíveis. Discutimos o orçamento de 2023 sem a definição da equipe à frente da Economia. Foi enviada uma PEC, que batizei de “PEC da Boa Sorte” (prescinde de explicação), com gastos muito além do razoável (estamos falando de 2% do PIB a mais de gasto, sem anúncio de contrapartidas de receita tributária ou redução de despesa) e por prazo indefinido.
Na retórica, a responsabilidade fiscal foi condenada e o mercado financeiro virou o malvado favorito da vez, vilão nacional, como se não fosse apenas um mecanismo de alocação de recursos que obedece às sinalizações do sistema de preços. Só há dois botões: você compra se vai subir; você vende se vai cair.
Lula e o fim do Brasil
Como qualquer outro analista, vi as notícias com preocupação. Aumentou a probabilidade de caminharmos para um novo equilíbrio macro de pior qualidade, com maior presença do Estado na Economia (e queda da já combalida produtividade dos fatores), mais inflação e mais juros.
Também hei de reconhecer que todos nós, ainda que de maneira não deliberada, estamos sujeitos aos próprios vieses. É sempre muito difícil, mesmo que não se admita, traçar a linha exata de onde começa a análise, onde termina a torcida. Os analistas também são humanos, muitos, inclusive, da pior qualidade.
Ressalvas feitas e ponderações à parte, o cenário “O Fim do Brasil” ainda não me parece o mais provável, vendo boas chances de as sinalizações das últimas semanas comporem retórica negocial do que propriamente uma caminhada pragmática naquela direção.
Gostemos ou não de Lula, falamos de uma das maiores lideranças políticas da história brasileira, talvez a maior, com capacidade ímpar de leitura das situações políticas e articulação. O próximo Congresso é diferente do atual, mais à direita, conservador e bolsonarista, tendo boa parte já com cabeça em 2026. Seu espaço de negociação tende a ser menor em 2023 do que neste momento.
Por isso parece fazer sentido pedir tudo que for possível (e até o impossível!), sem prazo definido, para não ter de voltar ao balcão de negócios à frente, quando as coisas ficam mais difíceis pra ele. Lula tenta mais graus de liberdade agora, pois sabe que não os terá depois na mesma magnitude.
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Do outro lado, o Congresso
Do outro lado, há o Parlamento. Por que assinar um cheque em branco agora, se haveria, no limite, o risco até de o novo Congresso revisitar a PEC da transição em 2023? Boa parte do Parlamento será renovado. Por que muitos sairiam assinando um orçamento sem saber os rumos do país? Vamos dar uma licença para gastar por quatro anos, sem nem saber quem será o ministro da Fazenda e o novo regime fiscal? Não seria mais racional manter para si o poder de barganha e aprovar um prazo menor, voltando a negociar em 2023?
Como sabe o Capitão Nascimento, o sistema é f…. E ele reage. O senador Alessandro Vieira já trabalha numa PEC alternativa, envolvendo “apenas" R$ 70 bilhões de gastos fora do teto, para 2023.
Boa parte dos deputados do chamado “Centrão" se reúne com o mundo empresarial e o sistema financeiro — não nos iludamos: ainda estamos no Brasil e parte desse pessoal é funcionário, devidamente remunerado, por grandes grupos empresariais. Lobby não formalizado, mas institucionalizado — da série, jaboticabas. Entre outras coisas, isso ajuda a explicar porque é tão difícil explodir o país.
A própria PEC original não é binária. Há espaço para sua desidratação. Davi Alcolumbre foi explícito ao dizer que o texto final será muito diferente do inicial.
Os sinais do último final de semana também são mais palatáveis. Guilherme Mello, o representante da Unicamp (e isso diz muita coisa!) na equipe de transição, deu entrevista à Folha quase como um fiscalista. O presidente Lula disse ter recebido construtivamente a carta de Armínio, Bacha e Malan. "Conselho bom a gente escuta” (tomara!).
A imprensa fala da possibilidade de anúncio iminente do novo ministro da Fazenda e do novo regime fiscal — um olhar atento talvez aponte boa probabilidade de Felipe Salto estar na secretaria do Tesouro; é um excelente quadro, que já fala quase como um governista.
Ademais, há de se notar o nível da reação ao discurso populista, que antagoniza política fiscal e social. Eu me pergunto se Perón seria o mesmo na era das redes sociais, dos grupos de Zap e da maior disseminação da informação. A imprensa tradicional, com sólidos e críticos editoriais de Folha e Globo, alvos típicos do bolsonarismo, se revolta contra a irresponsabilidade (não custa lembrar: “Globo golpista” foi expressão cunhada pelo petismo).
Lula 1, Dilma 3
Por fim, em democracias consolidadas, com mecanismos de pesos e contrapesos, imagina-se que alguma racionalidade prevaleça ao final, ainda que não muita e mesmo depois de tentarmos vários outros caminhos. Se insistir na aventura heterodoxa de experimentações com a macroeconomia, Lula corre o risco de inviabilizar seu governo logo na entrada.
Se a Selic for mesmo a 15%, conforme já se especula, mataremos famílias mais pobres, endividadas nos vários cartões de crédito, novidade da era dos bancos digitais e fintechs (dá-lhe seleção adversa; qualquer contra-argumento pode ser invalidado pela observação dos resultados do segundo trimestre, simplesmente horrorosos para a situação creditícia).
A resposta seria a necessidade de mais auxílio emergencial. Entramos na espiral de mais dívida, mais dólar, mais juro. A dominância fiscal captura a agenda. Chegamos ao Dilma 3 e, sendo assim, seguindo à risca o processo, ao governo Alckmin. Como político experiente, ainda que possa questionar os manuais ortodoxos de Economia, Lula sabe dessa lição.
Aqui, porém, não há espaço para falsas esperanças ou expectativas ingênuas. Entre o Lula 1 e o Dilma 3, talvez fiquemos como algo no meio do caminho, típico da mediocridade brasileira de sempre e do caráter macunaímico de que Lula é grande representante.
Enquanto isso, como resumiu Samuel Pessoa, voltamos ao Brasil velho de guerra, paraíso do CDI. As taxas de juro oferecem oportunidades formidáveis na renda fixa. Aproveite enquanto é tempo. Nossa Black Week já está no ar.
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