Embraer (EMBR3) reintegra o setor de aviação comercial após o fiasco com a Boeing. E agora, como ficam as ações?
Para a Embraer (EMBR3), a parceria com a Boeing em aviação comercial é passado; mas será que o mercado precifica corretamente suas ações?
Era dezembro de 2017 quando uma notícia caiu como uma bomba nos mercados brasileiros: a Boeing (BOEI34) estava em conversas com a Embraer (EMBR3) para comprar a divisão de aviação comercial da empresa brasileira. Uma saga que se estendeu por cinco anos, com aproximações, debates governamentais e rompimentos de contrato — e que, na superfície, chegou ao fim hoje.
Isso porque, nesta quarta-feira (26), a Embraer anunciou a reintegração completa do negócio de aviação comercial, após o fracasso da joint-venture com a Boeing. Ou seja: tudo volta a ser como antes — mas a água que passou por baixo da ponte trouxe desdobramentos importantes a serem considerados pelos investidores.
A começar pelas ações EMBR3: em junho de 2018, os papéis se aproximaram dos R$ 25,00, dando a entender que poderiam buscar novas máximas históricas; em outubro de 2020, chegaram perto dos R$ 6,00, atingindo novas mínimas; e, ao fim de 2021, já estavam novamente nos R$ 25,00 — a Embraer, inclusive, foi a empresa de melhor desempenho de todo o Ibovespa no ano passado.
Para entender melhor o movimento das ações EMBR3, é preciso relembrar exatamente o que aconteceu entre a Embraer e a Boeing — e como fatores externos, como a pandemia ou a criação de uma nova frente de negócios pela empresa brasileira para o desenvolvimento de eVTOLs, afetaram os rumos do grupo.
O mercado global de aviação civil
Em primeiro lugar, convém fazer uma breve explicação sobre o mercado de aviação civil no mundo e o equilíbrio de forças entre os inúmeros players globais. O interesse da Boeing na divisão comercial da Embraer ia muito além de uma mera fusão entre duas empresas do setor; era um movimento estratégico para ampliar a competitividade do conglomerado americano.
Há inúmeras fabricantes de aeronaves no mundo, mas há uma certa diferenciação entre elas. Companhias como Boeing e a francesa Airbus são particularmente fortes no setor de cabine longa — os aviões de grande porte, capazes de transportar centenas de passageiros e com autonomia para mais de dez horas de voo.
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Já a Embraer e a canadense Bombardier têm foco no segmento de cabine curta e média; seus jatos são menores e têm autonomia menor. Para a aviação civil, é importante que haja essa segmentação: uma companhia que opera apenas trechos regionais, por exemplo, não precisa de aeronaves grandes, que consomem mais combustível e têm custos operacionais mais elevados.
Dito isso, a Airbus e a Bombardier já estavam desenvolvendo parcerias estratégicas de negócio, unindo o melhor dos dois mundos — na prática, formava-se um conglomerado que fabricava aeronaves de todos os portes, o que conferia aos franco-canadenses uma vantagem competitiva em termos de negociação com as empresas aéreas.
Sendo assim, o passo natural para a Boeing era buscar uma saída semelhante à da Airbus, e a Embraer apareceu como a alternativa ideal: a empresa brasileira é reconhecida globalmente pela qualidade de suas aeronaves de pequeno e médio porte. O passo era fundamental para que os americanos não ficassem para trás em relação aos franceses.
Para a Embraer, a união de forças com a Boeing também era interessante. Em 2017, a companhia estava numa fase complexa de sua estratégia operacional: a nova geração dos jatos comerciais começava a ser entregue e recebia pedidos cada vez mais volumosos; em paralelo, a geração antiga continuava sendo encomendada.
Portanto, havia dois ciclos de aeronaves em andamento ao mesmo tempo. Uma situação que demandava investimentos elevados por parte da empresa brasileira e que implicava em riscos consideráveis de execução — a Bombardier, por exemplo, enfrentou turbulências significativas nos anos seguintes ao lançamento de sua nova geração de aviões de cabine curta e média.
Tendo esse contexto em mente, era importante para a Embraer ter a segurança financeira de um novo sócio, como a Boeing; a união com os americanos também abria mais portas no mercado global de aviação e reduzia os custos operacionais, aos moldes do que foi feito pela Airbus-Bombardier.
Era um casamento perfeito — até o momento em que não foi mais.
Embraer + Boeing: pandemia, crise e ruptura
Em dezembro de 2018, Embraer e Boeing chegaram a um acordo: a divisão de aviação comercial da empresa brasileira foi avaliada em US$ 5,25 bilhões e seria operada pelas duas companhias, num esquema de joint-venture — os americanos seriam donos de 80% da empreitada, pagando US$ 4,2 bilhões pela participação.
A priori, esse desenho traria dois desdobramentos óbvios para a Embraer: a entrada de um volume imenso de recursos no caixa da empresa e o redesenho operacional. A venda de 80% da aviação comercial implicava que as ações EMBR3 passariam a precificar uma empresa mais simples.
Os setores de aviação executiva e de defesa e segurança continuavam intocados, mas a aviação comercial seria reduzida a 20% da participação original — o que exigia ajustes e correções no preço dos papéis, considerando que esse era o segmento mais representativo em termos de receita da Embraer.
Esse cálculo, longe de ser trivial, fez com que as ações EMBR3 nunca tivessem uma reação explosiva às negociações com a Boeing; repare, no gráfico do começo desse texto, que os papéis tiveram um comportamento relativamente contido de 2017 a 2020, sem grandes oscilações para cima ou para baixo.
Seja como for, a negociação parecia caminhar sem maiores entraves e a concretização da joint-venture parecia caminhar sem problemas. Mas, a partir de 2019, uma série de problemas de diversas naturezas começou a atingir a Boeing e o setor aéreo como um todo.
O primeiro deles foi a crise envolvendo as aeronaves Boeing 737 MAX: dois acidentes fatais e em circunstâncias muito semelhantes — um da Lion Air, em outubro de 2018, e outro da Ethiopian Airlines, em março de 2019 — levantaram suspeitas quanto à segurança desses aviões.
Companhias aéreas e autoridades regulatórias no mundo todo proibiram o uso desses modelos, e toda a carteira de entregas da Boeing foi afetada, com empresas cancelando ou postergando as compras que já haviam sido fechadas. Uma crise institucional que, até hoje, não foi totalmente superada.
Meses depois, a pandemia de Covid-19 traria um baque imenso ao setor: com o fechamento de fronteiras e restrições à circulação de pessoas, as companhias aéreas viram-se numa situação delicada — o que trouxe um efeito dominó para as fabricantes de aeronaves. Afinal, se não há voos, não há porque renovar as frotas.
Nesse contexto, a parceria logo azedou e, em março de 2020, a Boeing rescindiu o contrato firmado com a Embraer; os americanos alegavam que determinadas cláusulas não foram cumpridas; os brasileiros afirmavam que a crise do 737 MAX e as perdas operacionais em meio à pandemia levaram a Boeing a uma 'quebra unilateral' dos termos.
O tema ainda está sendo discutido na Justiça, com a Embraer buscando uma indenização e tentando provar que cumpriu as etapas previamente estabelecidas. Mas, no começo de 2020, a situação parecia trágica para a empresa brasileira: a negociação com a Boeing foi um fiasco, sua divisão comercial estava separada e as perspectivas para o setor de aviação eram as piores possíveis.
Embraer, Eve e retomada
Tendo esse contexto em mente, como a Embraer conseguiu se recuperar em tão pouco tempo, a ponto de liderar os ganhos do Ibovespa em 2021?
Boa parte dessa retomada se deve à Eve, a divisão de eVTOLs — aeronaves elétricas de decolagem e pouso vertical — da Embraer. Fundada em 2018, ela começou como uma espécie de incubadora tecnológica e, em pouco tempo, tornou-se uma espécie de joia da coroa da empresa brasileira.
E isso porque os eVTOLs viraram a nova aposta global para a mobilidade urbana. Os 'carros voadores', como ficaram conhecidos, logo começaram a despertar o interesse de inúmeras empresas ao redor do mundo, e a Eve viu uma verdadeira explosão na demanda por seus protótipos.
Sim, protótipos: ainda não há carros elétricos decolando em lugar nenhum. Mas o conceito dos eVTOLs por si só já é suficiente para atrair inúmeros compradores e investidores — a Eve já tem quase 20 clientes em sua carteira e encomendas para quase 2 mil eVTOLs.
O potencial da Eve para voos maiores foi notado pela Zanite Acquisition Corp., uma empresa de aquisição de propósito específico (SPAC, na sigla em inglês). Em dezembro do ano passado, as partes chegaram a um acordo para levar a subsidiária da Embraer à bolsa americana.
A Eve, sozinha, foi avaliada em US$ 2,4 bilhões — uma cifra muito próxima do valor de mercado da Embraer inteira na época. A empresa brasileira, no entanto, não venderá a subsidiária à Zanite: as duas serão sócias no negócio, com a Embraer permanecendo com 82% da empresa.
EMBR3: o que esperar daqui em diante?
Dito tudo isso, é preciso fazer algumas considerações a respeito do futuro da Embraer, agora que a divisão de aviação comercial foi 100% reintegrada a sua estrutura organizacional e que a Eve se mostrou um sucesso.
Atualmente, a Embraer tem valor de mercado de US$ 2,8 bilhões, o que equivale a cerca de R$ 15,4 bilhões. No cenário em que a negociação com a Zanite seja concluída nos termos atuais, a participação de 82% da companhia na Eve seria avaliada em US$ 2 bilhões.
Portanto, todo o restante da Embraer — o que inclui as divisões de aviação comercial, executiva e de defesa e segurança —, está sendo precificado pelo mercado em US$ 800 milhões, ou R$ 4,3 bilhões. É um valor justo, ou os investidores estão subdimensionando os demais negócios da empresa brasileira?
Apenas a título de comparação: em setembro de 2018, antes de a parceria com a Boeing ganhar contornos mais firmes e quando a Eve era apenas um embrião, o valor de mercado da Embraer era de R$ 14,3 bilhões. Essa cifra, portanto, refletia apenas as divisões de aviação comercial, executiva e de defesa e segurança.
Obviamente, há uma diferença considerável entre R$ 4,3 bilhões e R$ 14,3 bilhões e, instintivamente, a tendência é a de acreditarmos que estamos diante de uma grave distorção: ou o mercado supervalorizou a Embraer lá atrás, ou está cometendo um erro crasso agora. Mas, antes de qualquer conclusão, é preciso levar em conta que, entre 2018 e 2022, muita coisa mudou.
Vejamos, rapidamente, como evoluiu a carteira de entregas de aeronaves da Embraer de lá para cá:
2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 1T21 | 2T21 | 3T21 | 2021* | |
Aviação comercial | 101 | 90 | 89 | 44 | 9 | 14 | 9 | 32 |
E170 | -- | 1 | -- | -- | -- | -- | -- | -- |
E175 | 79 | 67 | 67 | 32 | 2 | 7 | 6 | 15 |
E190 | 12 | 13 | 5 | 1 | -- | -- | -- | -- |
E195 | 10 | 5 | 3 | -- | -- | -- | -- | -- |
E190-E2 | -- | 4 | 7 | 4 | 2 | -- | -- | 2 |
E195-E2 | -- | -- | 7 | 7 | 5 | 7 | 3 | 15 |
Aviação executiva - jatos leves | 72 | 64 | 62 | 56 | 10 | 12 | 14 | 36 |
Phenom 100 | 18 | 11 | 11 | 6 | 1 | 1 | -- | 2 |
Phenom 300 | 54 | 53 | 51 | 50 | 9 | 11 | 14 | 34 |
Aviação executiva - jatos grandes | 37 | 27 | 47 | 30 | 3 | 8 | 7 | 18 |
Legacy 450 | 14 | 14 | 15 | -- | -- | -- | -- | -- |
Legacy 500 | 15 | 9 | 11 | 1 | -- | -- | -- | -- |
Legacy 650 | 7 | 4 | 5 | 1 | -- | -- | -- | -- |
Lineage 1000 | 1 | -- | -- | -- | -- | -- | -- | -- |
Praetor 500 | -- | -- | 3 | 10 | 1 | 3 | 2 | 6 |
Praetor 600 | -- | -- | 13 | 18 | 2 | 5 | 5 | 12 |
Total | 210 | 181 | 198 | 130 | 22 | 34 | 30 | 86 |
Repare que mesmo antes do começo da pandemia, as entregas da Embraer estavam desacelerando — e que, a partir de 2019, essa tendência ganhou força, especialmente no setor de aviação comercial. O segmento de aviação executiva foi impactado, embora com menor intensidade; o mix de jatos leves e grandes manteve-se relativamente favorável, com as aeronaves mais rentáveis continuando a ter um desempenho sólido.
Essa tendência mostrada pelo backlog de vendas é comprovada quando olhamos para o desempenho financeiro de cada divisão: ao fim de 2018, o setor de aviação comercial representava quase 50% da receita líquida da Embraer; no terceiro trimestre de 2021, essa fatia era de 'apenas' 31,3%.
Ou seja: em 2018, quando o mercado atribuía valor de mercado de R$ 14,3 bilhões, a aviação comercial era muito mais relevante para a Embraer. Além disso, a reintegração completa dessa divisão à estrutura organizacional da companhia traz economias operacionais e administrativas importantes, mas nada muito além — em termos financeiros, a Embraer nunca deixou de contabilizar 100% desse negócio em seu balanço.
Em termos de receita líquida, a situação da Embraer pouco mudou: em 2018, sua receita trimestral girava em torno de R$ 5 bilhões por trimestre, uma cifra parecida com a vista em 2021. No entanto, é preciso levar em consideração o efeito cambial: como as aeronaves são vendidas em dólar, o valor em reais de cada venda acaba sendo bem maior — a empresa não abre oficialmente os preços de seus aviões.
Assim, de concreto mesmo, resta apenas a constatação de que a aviação comercial da Embraer, hoje, é menos poderosa do que já foi um dia, fruto ainda do cenário de incertezas que a pandemia trouxe ao setor, e que a aviação executiva também vende menos do que no passado. Dito isso, o dólar mais alto ajuda a compensar as vendas mais fracas vistas nos últimos anos.
A carteira de pedidos de aeronaves comerciais, no entanto, traz alguma expectativa de melhora para a divisão. A Embraer conta atualmente com 313 contratos assinados a entregar, sendo 154 para aviões de primeira geração e 159 para jatos de segunda geração — mais modernos e mais caros. A transição entre as tecnologias vai ganhando força, o que tende a melhorar as margens operacionais do negócio.
Em resumo:
- As divisões de aviação comercial, executiva e de defesa eram avaliadas em mais de R$ 14 bilhões em 2018, e hoje têm valor de mercado de menos de R$ 5 bilhões;
- Em 2018, as vendas de aviões comerciais e de jatos executivos eram muito maiores, e a pandemia ainda afeta as perspectivas futuras para a retomada das vendas da Embraer;
- No segmento comercial, os jatos de segunda geração começam a ganhar protagonismo na carteira, o que aumenta a rentabilidade e as margens da divisão;
- Em defesa, as vendas do KC-390 têm garantido bons resultados à Embraer;
- O dólar alto ajuda a compensar a queda nas vendas de aeronaves.
É um cenário cheio de prós e contras, mas que dá a entender que, apesar dos riscos, a Embraer conta com fatores que ajudam a mitigar as eventuais turbulências. Essa percepção é confirmada pelos analistas que acompanham os papéis EMBR3: segundo dados do TradeMap, as ações têm quatro recomendações de compra e uma neutra.
Em termos de preço-alvo, a média das recomendações é de R$ 28,29, o que implica num potencial de alta de 35% em relação às cotações atuais; a projeção mais otimista, de R$ 43,00, traz um retorno implícito de mais de 100%.
Quanto ao valuation, os papéis EMBR3 são negociados atualmente com um EV/Ebitda de 14,8 vezes, abaixo da média de três anos para as ações, de 21,3 vezes; essa diferença tende a aumentar, uma vez que a projeção para o múltiplo ao fim de 2022 é de 9,2 vezes.
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