Socorro do BC ao Tesouro é sinal de que títulos públicos estão mais arriscados?
Com caixa no limite mínimo de segurança, o Tesouro precisou recorrer a recursos do Banco Central para honrar suas dívidas a vencer. Mau sinal para o investidor? É para sair vendendo os títulos? Entenda o que esse acontecimento significa para os seus investimentos.
Na semana passada, o Banco Central saiu em socorro do Tesouro Nacional. Com o caixa muito próximo ao mínimo considerado seguro - capaz de cobrir cerca de três meses dos vencimentos da dívida - o Tesouro vai receber, do BC, R$ 325 bilhões oriundos do lucro que a instituição obteve com a alta do dólar, que valorizou as reservas internacionais.
A ajuda foi aprovada, na última quinta-feira (27), pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que ainda deixou a porta aberta para a possibilidade de uma nova transferência ainda neste ano, se necessário.
Em poucas palavras, o Tesouro se viu com poucos recursos na sua “reserva de emergência”, utilizada para financiar o déficit público (os gastos acima da arrecadação do governo) e também remunerar os investidores dos títulos públicos que vão vencer nos próximos meses. E precisou de um reforço de caixa.
Ora, isso não representa um risco para o investidor de títulos públicos - por exemplo, do Tesouro Direto? Se eu tenho na minha carteira títulos que devem pagar juros ou vencer nos próximos meses, devo ficar preocupado? Se o Tesouro está precisando de um reforço de caixa, isso significa que os títulos públicos estão mais arriscados? O governo pode dar um calote?
Mais gastos, mas por um bom motivo
Primeiro, é importante entender por que o caixa do Tesouro chegou a esse patamar mais baixo que o usual. Temos, em 2020, uma situação atípica com a pandemia de coronavírus, e saímos de uma expectativa de déficit de R$ 129 bilhões para R$ 800 bilhões no ano.
A situação das contas públicas já não era das mais saudáveis antes, mas estava no caminho de uma melhora. A paralisação econômica decorrente da pandemia reduziu a arrecadação do governo, ao mesmo tempo em que o obrigou a gastar mais para reduzir os impactos da crise no emprego e na renda.
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No ápice da crise nos mercados, em março, os juros futuros dispararam, à medida em que os investidores entraram em uma busca desenfreada por liquidez, vendendo a qualquer preço seus ativos de renda fixa.
Também aumentou a percepção de risco para as economias do mundo, inclusive o Brasil, uma vez que não se sabia de que maneira, exatamente, a pandemia afetaria a atividade de cada país.
Em vez de rolar toda a dívida, sendo obrigado a pagar juros exorbitantes, o Tesouro optou por deixar os títulos vencerem e pagar suas obrigações junto aos investidores, o que contribuiu para a redução dos seus recursos.
Apesar de a situação de pânico vista em março já ter passado e os juros não estarem mais tão elevados, a curva permanece “empinada”, precificando juros muito baixos nos prazos mais curtos e taxas muito altas nos prazos mais longos.
Afinal, o mercado não espera uma alta de juros no curto prazo - o próprio BC já sinalizou que deseja manter a Selic baixa por um bom tempo, a fim de recuperar a economia pós-crise. Mas no longo prazo, há temores em relação ao risco-país, uma vez que agora a situação fiscal se mostra ainda mais frágil do que antes.
Pressão para gastar mais, dívida mais cara
Há uma pressão, no Congresso e no próprio Executivo, para que o governo fure o teto de gastos e prolongue o estado de calamidade pública para o ano que vem, a fim de investir e fazer mais gastos sociais. A indefinição em torno das reformas estruturais que serviriam para ajudar no equilíbrio das contas públicas e induzir o crescimento também preocupa.
Esses temores em relação à questão fiscal têm estado no radar do mercado. Além de contribuírem para manter os juros longos num patamar relativamente elevado, também vêm limitando as altas do Ibovespa, que têm andado um pouco de lado, rondando o patamar dos 100 mil pontos.
Nesse cenário, o Tesouro continua evitando alongar a dívida, isto é, rolar as obrigações atuais para prazos mais longos, a fim de não precisar emitir títulos às taxas elevadas atualmente exigidas pelo mercado.
Se não tivesse recorrido ao BC para esse reforço de caixa, provavelmente o Tesouro se veria contra a parede.
“Trata-se de um encurtamento adicional do estoque da dívida pública. Não é algo bonito de se ver, mas também não é uma reinvenção da roda. Isso evita que o governo acesse muito fortemente o mercado de títulos”, explica Adauto Lima, economista-chefe da Western Asset.
Não é o ideal, mas numa situação extraordinária, diante de uma pandemia, é preferível recorrer ao BC do que pagar juros mais altos. O socorro do Banco Central, portanto, é mais um sintoma da questão fiscal que o país enfrenta do que um problema em si.
“Mas não acho que isso signifique que agora o BC vai passar a financiar o Tesouro ou algo do tipo”, diz Lima.
Note, também, que não se trata de uma situação de falta de liquidez. Pelo contrário, o mercado está inundado de dinheiro, tanto no Brasil, como no resto do mundo. Recursos para financiar o Tesouro não faltam. O problema é o custo da dívida para o governo no longo prazo.
Ao mesmo tempo, ao não aceitar pagar juros mais altos para rolar a dívida, o Tesouro parece apostar que, num futuro não muito distante, as expectativas em torno da situação fiscal do país vão melhorar, os juros futuros vão cair, a Selic não precisará ser aumentada, e se financiar no mercado ficará mais barato. Logo, não haveria por que “chancelar” uma alta de juros agora, emitindo títulos a taxas mais altas.
“Se o governo der um bom sinal fiscal, com expectativa de redução do déficit, talvez o Tesouro consiga passar a emitir dívida a taxas mais interessantes”, diz o economista-chefe da Western Asset.
Para isso, ainda dependemos de definições acerca do orçamento para o ano que vem, das reformas, da manutenção do teto de gastos e dos programas de investimento e renda básica. Mas a ajuda do BC deve ser suficiente para manter o Tesouro numa situação confortável ao menos até o fim deste ano.
“Se o teto de gastos for abandonado, a estrutura de juros vai subir, e isso será muito ruim para o país”, conclui Lima.
Qual o impacto de tudo isso no investimento em títulos públicos?
Se você leu até aqui, já deve ter percebido que o fato de o caixa do Tesouro ter ficado baixo e o BC tê-lo socorrido, por si só, não é um problema, mas uma consequência de uma situação fiscal delicada.
E que, pelo contrário, foi até uma solução menos danosa, pois evita que o Tesouro precise emitir dívida a um custo mais alto, em um momento em que os gastos já pressionam.
A grande questão aqui, portanto, é como o risco fiscal impacta o investimento em títulos públicos, seja via Tesouro Direto, seja via fundos.
Bem, se você já tinha, na sua carteira, títulos prefixados ou atrelados à inflação com vencimentos a partir de 2025, deve ter percebido que a alta dos juros ao longo do mês de agosto desvalorizou esses papéis.
Como você talvez já saiba, no caso desses títulos, quando as taxas futuras sobem, os preços caem, e vice-versa. Assim, quem vende os papéis antes do vencimento é impactado por essas variações de preço de mercado. Só quem leva os títulos ao vencimento recebe a taxa contratada. Entenda melhor como são precificados os títulos públicos.
A alta dos juros futuros em agosto coincide, justamente, com esse aumento da percepção de risco do mercado em relação à situação fiscal do país.
Foi neste mês que começaram a ser mais discutidas as possibilidades de se furar o teto de gastos, prorrogar o estado de calamidade pública e o auxílio emergencial e aumentar o valor pago do Bolsa Família, a ser transformado no programa Renda Brasil.
A questão é: se a situação fiscal se deteriorar, a tendência é que os juros futuros subam ainda mais e que, eventualmente, o Tesouro precise emitir dívida a essas taxas mais altas. Isso aumentaria a desvalorização dos títulos pré e atrelados ao IPCA.
Já se o governo sinalizar que uma melhora fiscal está a caminho, a tendência é que haja um alívio nos juros futuros, valorizando os títulos comprados a taxas mais altas.
Aqui podem surgir duas dúvidas: a primeira é sobre a possibilidade de o Tesouro dar calote nos títulos. Quando se fala de dívida interna em moeda nacional, essa possibilidade é remota.
Mesmo se o Tesouro chegasse à situação limite de ficar sem caixa, ainda haveria dois possíveis caminhos para pagar a dívida: emitir moeda - o que poderia acabar pressionando a inflação - ou emitir mais títulos a prazos e juros maiores.
A segunda dúvida é quanto ao risco de mercado dos títulos públicos em si neste momento. Se os juros dos títulos de médio e longo prazo subiram, isso significa que se abriu uma oportunidade de investimento, para quem ainda não está posicionado neste papel?
E para quem já tem títulos mais curtos, é hora de vendê-los ou, quem sabe, trocá-los por papéis mais longos, dado que a maior pressão de juros está na parte longa da curva?
Bem, sem dúvida ao longo do mês de agosto se abriram oportunidades de compra em vencimentos médios e longos, que passaram a oferecer juros mais altos.
O grande risco, porém, é a situação fiscal piorar - por exemplo, se o governo sinalizar que vai abandonar o teto de gastos - e os juros subirem ainda mais. Isso derrubaria os preços dos papéis negociados hoje.
Há oportunidade, mas talvez seja melhor ir aos poucos
Marcos de Callis, estrategista da gestora de fortunas Hieron Patrimônio Familiar e Investimento, conta que seus clientes têm títulos de vencimentos bem curtos na carteira, e que a casa está aproveitando os momentos de maior estresse, em que há alta de taxas, para alongar os prazos.
“Fazemos isso em etapas. É difícil dizer qual o ponto ótimo para fazer todo o movimento [de migrar para vencimentos mais longos], porque ainda tem muita coisa em aberto nessa questão fiscal”, explica.
Ele lembra que de fato há uma demanda importante de gastos sociais e que ainda não se sabe como eles seriam acomodados sob o teto de gastos. “Hoje você tem um risco na parte longa da curva, mas é por isso que as taxas estão tão altas. Na hora em que o mercado tiver certeza [de que o teto será respeitado], aí sim haveria um alívio nos juros”, diz.
De Callis diz que o mercado está precificando em torno de 50% de probabilidade de o governo furar o teto de gastos, que ele considera até alta demais. “Não é que não haja motivos para essa projeção, mas esse cenário seria tão ruim, que não conseguimos imaginar o governo realmente alimentando essa ideia”, diz.
O cenário-base da Western Asset também é de que o teto será respeitado, apesar de todas as discussões recentes em torno dessa questão. Segundo Adauto Lima, economista-chefe da casa, as remunerações estão bastante elevadas na parte longa da curva.
“Mas é uma questão de apetite ao risco, porque alongar os prazos agora tem um bom risco”, observa.
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