Tiro no escuro
Se você dá um tiro na escuridão, não importa onde o projétil vai parar. No exato instante do disparo, você já sabe que tomou uma atitude irresponsável.

Entra um ladrão na sua casa. Você ainda não sabe disso. São duas horas da manhã e você dorme o sono dos justos. De repente, é acordado por um barulho de objeto caindo. Há um ruído estranho, não muito bem identificado ainda chegando aos seus ouvidos. O estranhamento o impede de pegar no sono de novo.
Então, você se levanta. Toma o devido cuidado para não acordar sua esposa, de sono particularmente leve. Ela está grávida e tem tido dificuldade para dormir. Você vai até a sala e percebe que a porta da rua está apenas encostada. Tem algo errado. O barulho quase imperceptível continua ao fundo, como se algo se mexesse dentro da sua casa, embora não seja possível perceber exatamente o quê, nem de onde vem.
Você tem uma arma guardada. Hesita sobre ir ou não buscá-la. Ela fica no armário perto do closet da sua esposa, dentro de um cofre. Você vai até lá. No caminho, percebe que a porta do quarto da sua filha está entreaberta. Isso o preocupa. Em silêncio, acelera a caminhada em direção ao seu quarto e pega o revólver, já carregado. A adrenalina sobe. Você pode sentir o coração palpitando de forma acelerada, a boca seca e as pernas levemente trêmulas.
Àquela altura, já está claro: há um bandido na sua casa e ele está com a sua filha. Você empunha o 38 já com o dedo no gatilho, receoso de que possa ser atacado de forma repentina. Empurra a porta do quarto com o ombro e, de súbito, atira no escuro, sem entender direito a própria decisão.
Por sorte, influência da Providência ou alguma habilidade especial de combate às cegas, do tipo Jean-Claude Van Damme em “O Último Dragão Branco”, o tiro acerta em cheio a têmpora do assaltante. Corrigindo, do sequestrador. Ele havia feito sua filha de refém. Apertava seu pescoço com o osso do antebraço, quase a asfixiando. O tiro, dado na escuridão completa, passou a poucos centímetros da testa da sua própria filha. Matou na hora o bandido, mas se você tivesse apontado a arma marginalmente em outra direção poderia ter feito uma vítima diferente.
O revólver estava devidamente legalizado e a situação foi considerada legítima defesa. Depois de um grande susto, a sensação era de alívio e, também se deve confessar, de uma autoavaliação de heroísmo. Afinal, você atirou e acertou o alvo com precisão cirúrgica. Você se sente um navy seal.
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Agora, pergunto: aquela foi mesmo a atitude certa? Você deve se vangloriar do acerto do tiro ou ponderar ter corrido riscos potencialmente elevados? O tiro que atingiu o assaltante não poderia ter acertado a sua própria filha?
Evidentemente, não estou interessado em questões criminalistas, tampouco em arcabouços mentais persecutórios do tipo “Crime e Castigo”.
Ao propor essa parábola, o objetivo é usar da metáfora para falar de finanças. Mais especificamente, de risco e retorno e do pensamento probabilístico.
Enquanto muitos passam boa parte do tempo tentando antever qual evento vai se materializar à frente, deveríamos estar pensando na distribuição de probabilidades de eventos futuros. Nós nunca saberemos exatamente o que vai acontecer. A razão é uma grande emoção, é um desejo de controle, sintetizou Nietzsche. É desconfortável a noção de que enxergamos apenas uma multiplicidade de cenários possíveis à frente, mas é a única verdade possível — de novo apelando a Nietzsche, o valor de um homem pode ser medido pelo tanto de verdade que ele pode suportar.
Há algo particularmente capcioso sobre o risco: é muito difícil medi-lo. A História só narra aquilo que aconteceu, nunca o que poderia ter acontecido. Se você foi prudente e o cenário ultrapositivo se concretizou, pode parecer que sua atitude foi excessivamente cautelosa, mas não havia como saber ex-ante.
Indo além, o pior é que, em muitas situações, não sabemos sequer a que nível de risco estivemos submetidos mesmo depois do ocorrido. Se você pensar num cenário e ele se concretizar, isso não prova que você estava certo. Você atirou no assaltante e acertou em cheio, mas aquilo, em verdade, foi uma loucura, uma irresponsabilidade. Você poderia ter matado a sua própria filha.
O investidor que comprou 100% de sua carteira em bitcoins há dez anos acertou em cheio em termos de retorno. Mas ele teve uma atitude adequada? Qual risco correu?
Em seu livro “The Most Important Thing”, Howard Marks sintetiza uma das mais belas passagens sobre risco. “No mundo dos investimentos, pode-se viver por anos às custas de um grande golpe ou de uma previsão radical que acaba por se revelar acertada. Mas o que prova um grande êxito? Quando os mercados estão em ascensão, os melhores resultados são frequentemente obtidos por quem assume mais risco. Essas pessoas são inteligentes ao anteciparem períodos favoráveis e apostarem no beta, ou apenas gente intrinsecamente agressiva que se beneficia dos acontecimentos? Em termos simples, quantas vezes se acerta pelo motivo errado no nosso ramo de negócio? Nassim Taleb lhes chama de idiotas com sorte e, no curto prazo, é sem dúvida difícil distingui-los de investidores competentes.
O essencial da questão é que, mesmo depois de um investimento ter sido concluído, é impossível dizer o grau de risco que acarretou. Certamente que o fato de um investimento ter resultado positivo não significa que não foi arriscado, e vice-versa. Como saber, no que se refere a um investimento bem-sucedido, se o resultado favorável era inevitável ou se foi apenas uma entre centenas de possibilidades (muitas delas desagradáveis)? O mesmo se aplica ao fracasso: como saber se se tratou de um risco razoável, com final infeliz, ou apenas uma loucura que merecia ser punida?
O investidor avaliou bem o risco envolvido? Eis a outra pergunta pertinente difícil de responder. O leitor precisa de um modelo? Pense num meteorologista. Ele diz que há possibilidade de 70% de chover amanhã e acaba chovendo. Estava certo ou errado? Ou, então, não chove. Estava certo ou errado? É impossível avaliar a precisão das estimativas de probabilidades diferentes de 0 e 100, exceto se houver um número muito elevado de observações.
(…)
Há uma grande diferença entre probabilidade e resultado. Há coisas prováveis que não acontecem — e acontecem coisas improváveis. Isso está sempre a acontecer.
(…)
Perante um investidor que perdeu menos do que outro em períodos de queda do mercado, podemos concluir que esse investidor assumiu menos risco, ou observar que um investimento caiu mais do que outro num determinado contexto e dizer que foi, portanto, mais arriscado. Essas afirmações são necessariamente exatas?
(…)
O desempenho da nossa carteira no cenário que se materializa não diz nada sobre o que teria acontecido no contexto das muitas histórias alternativas possíveis.
(…)
Por si, o retorno — e sobretudo em períodos curtos — diz muito pouco sobre a qualidade das decisões de investimento. O retorno tem de ser avaliado em relação à quantidade de risco assumida.”
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