Problemas com o gráfico a seguir (sobre os milhões de CPFs na Bolsa brasileira)
Demoramos cerca de cem anos para colocar 800 mil CPFs cadastrados na B3. Então, em um ano, triplicamos esse número.

As coisas acontecem devagar. Até que acontecem depressa, subitamente.
Demoramos cerca de cem anos para colocar 800 mil CPFs cadastrados na B3. Então, em um ano, triplicamos esse número.
O gráfico abaixo tem circulado por aí, muitas vezes acompanhado de boa dose de comemoração.

De fato, há razões para se comemorar. Sinal inequívoco da sofisticação dos investimentos das pessoas físicas brasileiras, algo pelo qual nós mesmos lutamos por bastante tempo.
Evidência também de uma conquista macroeconômica brasileira: a principal força propulsora desse movimento é a taxa básica de juros mais baixa. O investidor, vendo seu extrato bancário com rentabilidade real negativa na poupança ou no CDI, se vê obrigado a mudar. O sapo não pula por boniteza, mas por precisão. O Brasil era uma aberração de juro alto, onde o investidor era remunerado enormemente sem correr risco. Felizmente, essa distorção foi corrigida (esperamos que de maneira definitiva). Temos consequências muito importantes para consumo, investimento e endividamento público a partir das menores taxas de juro. E agora, para ter mais rendimento, o investidor há de incorrer em mais risco, como em qualquer lugar do mundo.
Fique claro: com isso, não estou dizendo que a diminuição da taxa Selic seja a única razão por trás de toda essa grande rotação. Não é somente a falta de água que faz os gnus no Serengeti desfilarem a grande migração. A digitalização certamente também desempenha um papel fundamental aqui, dando maior facilidade às pessoas físicas para, por meio da tecnologia, conseguir reestruturar seus investimentos. Os autobatizados shoppings financeiros, com protagonismo claro da XP Inc. (com os devidos méritos), cumprem função determinante aqui. A B3, evidentemente, merece elogios nesse ambiente — arrisco dizer que, pela primeira vez em sua história, houve uma política clara e voltada exclusivamente ao varejo. Todos nós deveríamos agradecer ao Felipe Paiva (e equipe) e, claro, ao Gilson por esse momento histórico.
Essas duas forças estruturais e seculares (Selic baixa e digitalização) sintetizam aquilo que André Esteves, do BTG, tem chamado de “financial deepening”. O próprio BTG, aliás, para acelerar sua participação no fenômeno, acaba de anunciar uma oferta de ações. A ideia é captar dinheiro para investir justamente em sua operação digital. Embora negue-se alguma aquisição específica no segmento, eu sinceramente não acredito. Entendo que o BTG deva aumentar sua fatia no Pan e comprar alguma plataforma de investimento, talvez Easy, Guide ou Órama (estão todas na prateleira). E hoje mesmo foi anunciada a aquisição de 35% do ModalMais pelo Credit Suisse — fala-se num valuation total de R$ 5 bilhões (uau!). Apenas algumas referências para mostrar o quão aquecido está o setor.
A lista de fatores por trás da maior participação da pessoa física na B3 dificilmente poderia ser esgotada aqui, mas poderíamos citar ainda entre os elementos principais: a adoção, desde o governo Temer, de uma política econômica mais ortodoxa, uma postura governamental mais clara em favor de apoio ao mercado de capitais, maior fluidez de informação sobre investimentos por meio da internet, o ganho de importância de influencers digitais (que ficaram bastante famosos e populares), avanços regulatórios por meio do reconhecimento pela CVM da importância dessa nova comunicação digital, etc.
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Não há como se animar com a sofisticação dos investimentos pela pessoa física. Agora, ela se vê obrigada a diversificar dentro da própria renda fixa, saindo dos pós-fixados soberanos em direção a crédito privado e indexados e prefixados de maior duration. Além disso, passa a experimentar o esperado maior retorno potencial das ações, mediante a menor atratividade relativa da renda fixa. E pode internacionalizar e dolarizar sua carteira, conferindo uma importante diversificação geográfica e de moedas ao seu portfólio, o que era quase impossível antes, no Brasil dos juros básicos de 15% ao ano, quando o custo de oportunidade de sair do país impunha ligar contra si um taxímetro que rodava a mais de 1% ao mês. Inviável. Agora, com tecnologia e conta de capital aberta, podemos facilmente ser investidores globais, quase sem perceber.
Receio, porém, de que a celebração esteja sendo feita sem o devido comedimento. Quando as festas são feitas sem que se aprecie com moderação, sabemos das consequências. A ressaca pode ser grande.
O que está acontecendo?
Muitas das pessoas estão sendo atraídas por uma falsa expectativa de lucros rápidos e sem risco, concentrando suas posições em uma ou outra ação de sua empresa favorita, normalmente defendida por algum daytrader de plantão — alavancado e que só sabe ganhar dinheiro mesmo com front running. Nos EUA, o caso mais famoso é de Dave Portnoy, que, sem qualquer exagero, tem milhares de seguidores, chama Warren Buffett de idiota e afirma que “stocks only go up” (as ações só fazem subir).
Sim, é um fenômeno global e tem na plataforma Robinhood a maior representação de seus excessos, com uma explosão de contas de novos daytraders (muitos deles sem ter o que fazer na quarentena e, surpreendentemente, com aumento de renda, dado o coronavoucher norte-americano, disponibilizado até para quem muitas vezes não precisava), a multiplicação do interesse por empresas que acabaram de decretar falência e, como uma estatística sombria, aumento das taxas de suicídio.
O Robinhood acaba de reportar 3 milhões de novas contas abertas no primeiro trimestre de 2020, sendo metade delas de traíres de primeira viagem. Do total, 32% têm entre 25 e 34 anos.

O tema foi recentemente tratado em coluna de Scott Galloway, professor da NYU Stern, de título “iAddiction”. A certa altura, ele afirma: “mídias sociais e jogos de apostas têm o mesmo mecanismo psicológico viciante: recompensas variáveis — você continua desempenhando uma ação na esperança de conseguir uma possível, mas improvável recompensa. Esse é o tipo de comportamento que é mais viciante e mais difícil de ser interrompido”.
Pausa para um brevíssimo testemunho pessoal: por alguns anos de sua vida, marcados por seus maiores fracassos financeiros, meu pai foi um daytrader. Ele perdia, perdia e perdia, mas mantinha a expectativa incólume de que seu próximo trade seria vencedor — um retorno altamente improvável mas certeiro, que lhe permitiria mais do que compensar as várias rodadas de prejuízo. Era um comportamento típico de um viciado, atormentado pela ruína financeira e pela falta de esperanças num caminho alternativo. O desalento está entre as piores sensações.
Veja que curioso: segundo Galloway, 12% de toda atividade de trading vem dos daytraders; contudo, os daytraders respondem por apenas 1,6% dos traders lucrativos. Homens tradam mais do que as mulheres, e os solteiros negociam mais do que os casados. Crashes no mercado têm sido associados historicamente a aumentos no número de suicídios.
O crescimento do número de pessoas físicas no Brasil merece, sim, ser celebrado. Com efeito, é um processo apenas no início, que deve durar por anos e anos ainda, sendo um caminho sem volta. No mito da caverna de Platão, fica impossível voltar às sombras depois que você viu o mundo sob a claridade.
Contudo, os processos de crescimento muito rápido e acelerado dificilmente acontecem de forma organizada, racional, bem pensada e comportada. Elas se dão de forma orgânica, com suas próprias excentricidades. Trazem riscos e problemas, as consensualmente batizadas “dores do crescimento”.
Todos nós — financistas e investidores, novos ou velhos — devemos cuidar para que essa dinâmica não exploda em seu início. Para isso, alguns cuidados:
— O investidor precisa lutar contra um dos mais elementares sentimentos humanos: a ganância. Se ele estiver atraído pela próxima superoportunidade que, se comprada de forma concentrada, vai fazê-lo multiplicar rapidamente seu patrimônio, possivelmente isso não vai acabar bem. O problema de concentrar suas apostas num único cavalo é que, necessariamente, uma hora você vai errar. Todos erram. Soros, Buffett, Jorge Paulo Lemann, todos colecionam uma lista de investimentos errados em sua trajetória. O problema de errar concentrado é que vai ser um erro grande, que pode implicar falência. Você será expulso do jogo. Está fora, não volta mais. Isso precisa ser evitado a qualquer custo.
— Havemos de combater fortemente mensagens do tipo: “stocks only go up”. O problema da renda variável é que ela varia. Ações caem. E caem muito. Você precisa estar preparado para isso.
— O investidor que saiu da poupança ou do CDI para ir à B3 pode entendê-la da mesma forma que sua aplicação anterior. Da mesma maneira com que ele não ficava tradando de uma conta poupança para outra, ele não deve ficar trocando de posição toda hora em Bolsa. Ações são pedaços de empresas e, obviamente, empresas obedecem a ciclos empresariais, que duram anos, não semanas ou poucos meses. Estamos comemorando a multiplicação dos CPFs porque isso representa desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, não é isso? Portanto, entendamos o mercado de capitais pelo que ele é: instrumento de formação de poupança de longo prazo, não um cassino viciante.
— Precisamos lutar por uma maior diversificação do investidor, não somente de ativos, mas de fatores de risco. Se você está comprado em BOVV11 e B50, você não está diversificado. Precisamos ter Bolsa (com ações de baixa correlação entre si), indexados, fundos imobiliários, dólar, ouro.
Feliz e infelizmente (sim, essa coexistência é possível!), estamos apenas começando.
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