Lula solto — e agora? (Ou, por uma dose de nacionalismo)
Talvez estejamos diante de um caso de antifragilidade clássico. Há uma possibilidade de sairmos não somente iguais depois desse choque aparentemente negativo, mas também de sairmos melhores
Talvez seja uma atitude pretensiosa arriscar o que perturba a mente alheia. Se assim lhe soar, peço desculpas. Da minha parte, porém, sinto dificuldade em escapar da pergunta, que tenho repetido a mim mesmo desde o final de semana: com Lula solto, como fica a tese do bull market estrutural? Os sucessivos recordes para a Bolsa, a trajetória de queda dos juros futuros e o prognóstico de apreciação do real estariam ameaçados? E ainda: a plataforma de reformas liberais poderia encontrar dificuldades adicionais agora?
Respondendo de forma simples e direta, não entendo que Lula solto configure, ao mesmo neste momento, uma ameaça material à tese do bull market estrutural. Como talvez os três leitores se lembrem, desde que escrevi em março do ano passado o chamado “Segundo Mandato Temer”, afirmo que a agenda liberal, fiscalista e de direita se imporia. A figura em si do presidente seria menos importante do que a plataforma reformista. O pêndulo caminharia necessariamente na direção da liberal-democracia, do menor dirigismo estatal, da abertura da economia e do controle fiscal, além de personalismos dos variados espectros políticos.
A única alternativa possível à caminhada em direção ao precipício, simbolizado pela trajetória até então explosiva da nossa dívida pública. No país dos heróis sem nenhum caráter, prevalece a tendência macunaímica, a mediocridade, a complacência. Não temos vocação para a explosão e, portanto, precisaríamos arrumar a casa.
Representação máxima
Lula é talvez a representação máxima desse personalismo fora de hora e atraso no relógio das condições materiais, cujos ponteiros indicam outra direção agora. O Congresso abraçou a pauta liberal, fiscalista e reformista, inclusive, com protagonismo na Previdência; Rodrigo Maia foi capa da Bloomberg, como “o homem que salvou o Brasil”. O Executivo também está na mesma página — a imagem de Paulo Guedes ao lado de Davi Alcolumbre quando da aprovação da reforma da Previdência no Senado é emblemática. Fique claro: embora Paulo Guedes seja, com o devido mérito, a maior representação dessa plataforma, ele está na companhia muito aprazível de gente como o Salim, o Tarcísio, o Mansueto, o Troyjo e por aí vai. Não é uma figura, uma persona, seja ela do ministro da Economia ou mesmo do presidente da República. Temos um exército em favor das reformas, e não é o exército de um homem só de Joaquim Levy na era Dilma.
Lula solto é diferente de Lula inocente ou elegível (ainda que não possamos descartar qualquer hipótese neste país). O Congresso é o mesmo, o Executivo é o mesmo. Ok, você tem razão. O STF também é o mesmo, infelizmente. Mas ele não parece interferir no fluxo das reformas objetivamente e, sob os olhares pragmáticos do aético (não confundir com antiético) mercado financeiro, é isso que interessa.
As condições materiais que nos trouxeram à vitória da agenda continuam postas à mesa e não há quem possa interromper o trem da história.
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Arriscaria até ir um pouco mais longe. Talvez estejamos diante de um caso de antifragilidade clássico. Há uma possibilidade de sairmos não somente iguais depois desse choque aparentemente negativo, mas também de sairmos melhores.
O antagonista de Bolsonaro?
A ideia é a seguinte: o que representa Jair Bolsonaro? Há, claro, seus seguidores mais apaixonados e fiéis, defensores de um conservadorismo nos costumes. Mas eu sinceramente não acho que esse grupo teria sido suficiente para fazê-lo vencedor nas últimas eleições. Em seu aspecto mais amplo, Bolsonaro representa o antipetismo, o anticorrupção, o antiestablishment, ungido num período de profunda insatisfação com parte das instituições brasileiras, com o “sistema”, com a corrupção e com a maior recessão da história republicana brasileira. Ou seja, Bolsonaro, para a maior parte da população, não representa muita coisa em si, a não ser o “anti”.
Entendo ser um engano acreditar que sua eleição se deveu à defesa do conservadorismo nos costumes e da ordem liberal — até porque, em essência, essas coisas não combinam muito. O verdadeiro liberalismo também o é nos costumes, como sabe o leitor mais superficial de Milton Friedman. E sejamos claros aqui: o presidente em si nunca foi uma referência em termos liberais em suas votações quando da atuação parlamentar.
Bolsonaro precisa de um antagonista para ver sua máxima representação. É por meio do duelo retórico e midiático com Lula que ele mais se projeta. Não pode haver filme de herói sem vilão, luz e sombra se definem pela ausência da outra. Então, ele pode ser o grande ganhador desse processo, em especial se direcionar o embate justamente para a arena em que pode ser o grande ganhador: a economia.
Em seu primeiro discurso solto, Lula atacou a política econômica de Paulo Guedes. Ótimo, então. Façamos o duelo nesse escopo. O único risco para sua reeleição passa a ser o de chegarmos ao pleito de 2022 com uma economia fraca. E as chances de isso ocorrer aumentam com um eventual fracasso da agenda de reformas.
Em resumo, fazemos a opção por acelerar a aprovação das reformas e, com isso, encerramos a questão. O governo passa a ter um adversário potencial e, assim, entende a real necessidade de jogar o jogo direito, aprofundando e acelerando as reformas. Bingo! O resultado final de uma notícia aparentemente negativa acaba sendo positivo, tendo em Jair Bolsonaro seu grande vencedor.
O leilão de fechamento de sexta-feira pode ter sido a última chance de comprar Eletrobras tão barata. E isso quer dizer muita coisa.
Não gostaria de encerrar esse texto com uma mensagem excessivamente otimista, como se fechássemos os olhos para o lado feio dessa história toda. Porque, não nos iludamos, há um “dark side of the moon” aqui — talvez haja também o pequeno problema lembrado por Roger Waters: “There is no dark side of the moon, really. Matter of fact it’s all dark.” Aqui escrevo mais como cidadão, menos como CIO.
Há um falso discurso, de ambos os lados, de defesa dos interesses nacionais. Lula não quer deixar Paulo Guedes vender o Brasil aos porcos capitalistas estrangeiros. Bolsonaro quer o País acima de tudo.
Não há nada de nacionalista em Lula ou em Bolsonaro. Nada.
O que é exatamente o nacionalismo?
Como muito bem disse Yuval Harari em sua passagem recente pelo Brasil, o nacionalismo é algo muito recente na história da humanidade. A tradição, antes da ideia de nação, era vivermos como famílias, entre amigos e em tribos. E aqui talvez entre um dos grandes diferenciais do homem em relação a outros animais: a capacidade de conviver e cooperar em grupos enormes, inclusive com pessoas desconhecidas. O nacionalismo é o amor a todos aqueles que nasceram na mesma nação que você, é preocupar-se com um estranho e não somente com familiares e amigos.
Diante da necessidade de decidir entre nomear um estranho altamente capacitado para um cargo ou um familiar menos hábil para a mesma função, um nacionalista haveria de optar pelo primeiro. Amamos e valorizamos os compatriotas, não somente os elos pessoais, de tal sorte que a habilidade técnica e o que ela pode fazer pelo país precisam ser valorizados.
Haveria alguma outra chance de Eduardo Bolsonaro ser cogitado como embaixador nos EUA se ele não fosse filho do presidente Jair? Há algo de nacionalista nisso?
Ao mesmo tempo, Lula, com seu “nós contra eles”, com sua proposta de inflamar as massas e incentivar um cisma no país, tampouco pode ser considerado um nacionalista. Ama somente os brasileiros de camisa vermelha.
Não podemos confundir nacionalismo com fascismo. O primeiro é sobre integrar diferentes, amar pares estranhos, cooperar com o desconhecido — não se trata de xenofobia ou de ódio ao estrangeiro. O fascismo é colocar a nação acima de tudo e tratar seus interessantes como os únicos relevantes na vida, inclusive, talvez, impondo-os sobre os demais.
Também não há razão para o nacionalismo confrontar-se com o globalismo. Ao contrário. O segundo pode ser apenas uma extensão do primeiro. Além de amar os brasileiros e cooperar com eles, podemos (e devemos) fazer o mesmo com todos os terráqueos. Esse pode ser inclusive o caminho para a superação dos embates comerciais hoje em curso no planeta.
Será que um dia voltaremos ao tempo em que o Itaim e a Vila Madalena, o Leblon e o Baixo Gávea pertenciam à mesma nação e debatiam apenas se haveria ou não uma saideira adicional?
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